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Lupa
O desafio de disseminar o ‘espírito Lupa’
01.06.2022 - 07h00
Rio de Janeiro - RJ
Em sua primeira edição, a Lupa abre aspas para o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, e o filósofo e professor emérito da UFRJ, Marcio Tavares D’Amaral, para falarem sobre tecnologia, educação e o valor do diálogo no combate à desinformação. Para os pensadores, o desafio atual é estimular o pensamento crítico típico dos checadores: disseminar um ‘espírito Lupa’

Quando, ainda no final do século passado, a Internet saiu dos gabinetes militares e salas de pesquisa das universidades dos EUA para ganhar o mundo como plataforma de comunicação de massa, muitos estudiosos do fenômeno - teóricos como o franco-tunisiano Pierre Lévy, o espanhol Manuel Castells ou o americano Henry Jenkins - desenhavam o futuro com otimismo. Falava-se num mundo de experiências compartilhadas e de inteligências coletivas onde todos poderiam, enfim, ter seus "lugares de fala". Acreditava-se na internet como uma nova ágora, nome dado às praças públicas gregas, onde cidadãos podiam expor suas ideias. Menos de 30 anos depois, o que se vê é um amontoado de sociedades polarizadas e uma guerra de narrativas onde importa mais vencer o debate do que chegar à verdade. Afinal, o que pode ter dado errado no meio do caminho?
“Pensava-se que a Internet seria esse espaço de discussão democrática, porque permitia presentificar o ausente, ou seja, permitia que pessoas que não estivessem umas na presença das outras começassem a conversar entre si, colocando o mundo supostamente em diálogo”, diz o ex-ministro Janine Ribeiro. Mas é preciso aceitar que toda tecnologia também traz consigo seu lado de tragédia. “Me parece que o desastre, das redes sobretudo, foi facilitar as polarizações. O que passou a circular foram as opiniões, aquilo que nossos fundadores, Sócrates e Platão, combatiam e que era a força dos sofistas: fazer valer a opinião num discurso de convencimento. Hoje, a verdade está fora e o que circula nas redes são opiniões”, diz Márcio Tavares D’Amaral.
E quando se fala em tecnologia e lado desastroso, é bom lembrar, nem sempre a conversa se refere a conteúdo. Pode ser formato mesmo. Por pouco a dificuldade de conexão com a internet, por exemplo, não se transformou na ironia desta entrevista. Enquanto o repórter, por muitos minutos, esteve à beira de um ataque de nervos a respeito da estabilidade do sinal e da gravação da videochamada (quedas de rede acontecem), os entrevistados estavam ambientados e à vontade com a transmissão. Relaxados também entre si. Apesar da distância e do fuso entre Brasil e Europa - D’Amaral aqui, Ribeiro lá - o encontro entre colegas de longa data mostrou entrosamento em um diálogo aberto, sério e esperançoso.
Neste primeiro Abre aspas, os dois pensadores brasileiros falaram de internet, redes sociais e seus efeitos na educação - benefícios, riscos e contradições. Discutiram também os desafios da educação brasileira de forma mais ampla, as mudanças nas salas de aula e o papel do letramento midiático no combate à desinformação durante este ano eleitoral e nos próximos anos.
Polarizações e a ausência do ‘lugar do meio’
Nem todo o mal é fruto das redes sociais. Muitas vezes, elas servem para externar um sentimento de desconforto e atrito cuja origem aconteceu anos antes. Tanto Ribeiro quanto D’Amaral são unânimes em afirmar, por exemplo, que muita da tensão nas redes estaria ligada ao fenômeno da globalização, que aproxima e, muitas vezes, põe em conflito culturas e visões de mundo antes afastadas entre si. “É o caso dos imigrantes na Europa. Vemos pessoas que sentem que seu país está sendo ocupado por outros. Durante milênios havia pouco ou nenhum convívio com o outro, o diferente, e não se vivia uma experiência de alteridade tão intensa como a que temos hoje”, afirma Ribeiro.
Nesse contexto, a desinformação estaria ganhando terreno, reforçando convicções que mantêm os indivíduos em bolhas e inviabilizando a construção de pontes, como indica D'Amaral: “Cada bolha é um ponto de vista total sobre o mundo, portanto excludente das outras bolhas. Não vejo possibilidade de pontes entre elas, sobretudo nesse movimento de radicalização extrema que vai marcar as eleições”.
Ele explica que seria preciso haver um lugar do meio, o local mais provável onde se encontra a verdade, para que as pontes existissem. “Me parece que as polarizações suprimiram este lugar. Talvez num momento de menor radicalização, a gente possa começar, baseados no diálogo, a procurar pontes que nos levem à ágora, ao Jardim de Epicuro, onde as pessoas iam na convicção de que, pensando alguma coisa, encontrariam alguém pensando outra coisa e assim poderiam construir algo nesse meio em comum”.
É fato que a conjuntura atual não é a das melhores. Por isso, apontar soluções categóricas para este paradoxal “rompimento de conexões” seria tão tolo quanto imaginar que a terra é plana. Ainda assim, a educação, e junto dela a alfabetização, o letramento midiático e a comunicação científica, já nos primeiros minutos de entrevista foram mencionados como caminhos a percorrer. E para ontem.
Educação e o desafio do conhecimento como valor
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua Educação de 2019, do IBGE, mostram que cerca de 29% da população brasileira é analfabeta funcional. Ou seja, lê, mas não entende o que lê. Em paralelo, uma pesquisa da Plos One, divulgada no final de 2021, apontou o Brasil como o quarto país com maior disseminação de fake news sobre as vacinas de Covid-19. Confrontado com esses números e com a impressão de especialistas em desinformação de que há relação entre o déficit educacional e o aumento da desinformação no país, Ribeiro afirma: “Sem dúvida, há relação direta aí, que resulta na enorme dificuldade de muitas pessoas de lidar com dados, fatos e informações”.
O ex-ministro observou, no entanto, que a adesão às desinformações não é problema exclusivo do Brasil. “Mesmo em países que têm uma tradição democrática forte, como a França, houve 40% de votos a favor de uma candidata da extrema direita, e o número de declarações falsas que ela disse em debates e entrevistas foi elevado. Mas há pessoas que acreditam”, declarou Janine.
D’Amaral aproveita o raciocínio para acrescentar que a crença, neste caso, é uma peça-chave: “é preciso lembrar pragmaticamente que, para aqueles que não conseguem entender o que lêem, muitas vezes a única maneira que têm de se relacionar com o que é dito é acreditar”.
Há tempos que pensadores de várias áreas criticam o que (não) se faz a respeito da educação no Brasil. Ribeiro e D'Amaral fazem coro. “Vivemos um momento dramático”, afirmou Janine Ribeiro. Por mais de uma vez, foi possível notar nas respostas de ambos que a desvalorização dos professores e do conhecimento - um fenômeno conhecido como anti-intelectualismo - têm, na sua visão, grande impacto na formação da juventude brasileira, em especial do ponto de vista ético. “Sinto que, mesmo nas universidades públicas, muitos dos nossos alunos estão lá sem sentir que têm um compromisso com a sociedade, que está permitindo que estejam ali”.
Ainda sobre as relações entre o analfabetismo funcional e a adesão ao conteúdo desinformativo, D'Amaral vê no consumo uma espécie de compensação pela ausência de pensamento crítico.
“Quando não há filtros críticos para a leitura de um conteúdo, o consumo aparece como resposta. Consome-se tudo, não só bens e serviços: pessoas, valores, subjetividades. Você consome aquilo em que você acredita previamente e, consequentemente, não consegue furar criticamente algo que é dito. Por isso, fake news, terraplanismos e teorias da conspiração pegam tanto nesse momento”, diz ele.
Nas salas de aula, os livros têm perdido espaço para as telas, mas isso não é novidade nem necessariamente algo ruim. Afinal, a cultura do audiovisual tem sido importante ferramenta educativa. Mas ela requer não apenas o preparo do professor, como também do aluno. Nesse ponto, os professores comentam sobre as perspectivas da educação midiática no Brasil que, em sua visão, ainda caminham a passos lentos.
Marcio D’Amaral revela que tem percebido em seus alunos de graduação recém-ingressos na universidade a dificuldade com a leitura textual, que perde valor e agora acontece num fluxo diferente: por imagens e em rede.
“Há quase 40 anos, a SBPC criou a revista Ciência Hoje, com foco na divulgação científica, o que mostra que há tempos existe um esforço nessa linha”, diz Ribeiro. Voltando algumas décadas, o presidente do órgão lembra que outras revistas particulares foram criadas com intuito semelhante. “O que precisa ser discutido é se estamos empoderando as pessoas com as descobertas da ciência, com instrumentos para lidar com a vida, separar o joio do trigo, ou apenas transmitindo curiosidades, o que se aplica muito às fake news”.
‘Espírito Lupa’
As notícias falsas, aliás, nunca estiveram tão presentes como nos últimos dois anos, com a pandemia de Covid-19. Origem do vírus, isolamento social, tratamento precoce, dados epidemiológicos e efeitos da vacina foram apenas alguns dos temas explorados pela indústria da desinformação no Brasil e no mundo. Em 2022, as eleições estarão no centro da cena e, apesar da mobilização de alguns órgãos públicos e plataformas como Facebook, Twitter, YouTube e Whatsapp, dificilmente a desinformação deixará de ser protagonista.
Certamente o debate sobre fake news se tornou mais popular, mas será que isso significa que as pessoas chegam mais bem preparadas para lidar com a questão neste ano eleitoral? “Tenho a impressão de que a maneira como o governo conduziu a pandemia gerou nas pessoas uma percepção de haver ali alguma coisa errada e de que todos estavam sendo enganados”, diz D’Amaral, que interrompe a fala, reflete e não arrisca: “Se isso tornou as pessoas mais hábeis a procurarem os caminhos “antidesinformacionais”, não sei. O fato é que essa espécie de “espírito Lupa” precisa ser muito disseminado. A reação imunológica que os checadores vão gerar pode levar as pessoas a reduzirem a desconfiança”, concluiu.
“Eu tenho uma visão muito parecida com a do Márcio e começo por um paradoxo: como numa época que deve à ciência mais do que qualquer outra época, veio florescer o negacionismo? Como é que nós temos hoje esta recusa do conhecimento técnico e do saber? Vou apenas me atrever a uma hipótese: existe uma certa raiva do conhecimento", diz Ribeiro.
Então, qual seria o papel da academia nessa história? Afinal ela se comunica bem com a sociedade? D’Amaral é categórico na resposta: "Eu penso sempre que não. Para isso, seria necessário que houvesse uma grande ênfase na comunicação científica, que é mais do que divulgação, como vimos ser feito por figuras como Atila Iamarino e Natália Pasternak durante a pandemia”.
Ao final de duras constatações, uma dimensão mais filosófica aparece ao fim da conversa para iluminar um panorama crítico e cinzento. Ribeiro, num tom que mistura conselho e pacto, diz a D’Amaral: “Temos que fazer as pessoas sentirem que o conhecimento é portador de futuro, e que o desânimo que tanto se espalhou pelo Brasil pode ser vencido”.
D'Amaral completa: “Assino embaixo. Somos profissionais da esperança. Anteontem, eu dei minha primeira presencial na graduação depois de dois longos anos. É a garotada, jovens de 17 anos. Eu, por cautela, pedi para não dar aula numa sala de aula fechada e fui dar aula em um dos jardins do campus. Depois, postei uma foto e um vídeo dessa aula. Acho que nenhum post que eu tenha feito recebeu tantas interações. Uma pessoa comentou assim: “Me lembrou minha avó, que era professora no interior e dava aula embaixo do abacateiro”. O que me pareceu ali? Que eles gostaram do afeto! Esse grau de afetividade parece ser algo capaz de furar, ainda que pouco, essas enormes dificuldades que temos na educação hoje. Talvez sair um pouco da academia platônica, na direção do Jardim de Epicuro”.

Renato Janine Ribeiro | Filósofo e cientista político, é professor titular do Departamento de Filosofia da USP. Foi Ministro da Educação em 2015 e atualmente é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Graduado em Filosofia pela USP, mestre pela Université de Paris-I, Panthéon-Sorbonne e doutor em Filosofia pela USP. Especialista em Ética e Filosofia Política, é pesquisador sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É autor de 11 livros e vencedor do prêmio Jabuti de melhor ensaio (2001). Em 2021, lançou Duas ideias filosóficas e a pandemia (Estação Liberdade), onde reflete sobre o impacto da pandemia de Covid-19 no agir ético contemporâneo.
Marcio Tavares D’Amaral | Filósofo e professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ, é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RJ, mestre em Comunicação pela UFRJ e doutor em Letras pela UFRJ. Foi pesquisador 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É autor de livros sobre Comunicação, História, Filosofia e Religião. Em 2021, lançou Seis ensaios da quarentena (Editora UFRJ), onde reflete sobre a exclusão e o sofrimento dos sujeitos excluídos pela globalização do consumo - fenômeno agravado pela pandemia.

Produzido por Dominique Gogolevsky
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