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Lupa
Por que acreditamos só no que queremos?
15.07.2022 - 19h02
Rio de Janeiro - RJ
Nunca produzimos tanta ciência como hoje. Por outro lado, nunca se acreditou em tanta desinformação. Mas, afinal: que fatores psicológicos e sociais poderiam explicar a crença em tantos absurdos? Para entender isso, a Lupa abre aspas para a professora da UFPI e coordenadora da Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCd), Ana Regina Rêgo, e para o psicólogo, professor e pesquisador da UnB e ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), Ronaldo Pilati. 
Um diálogo dividido em duas partes. Nesta primeira, falamos sobre o efeito das crenças e o perigoso alcance das fake sciences. O combate à desinformação debatido como um fenômeno complexo, de múltiplos fatores e uma solução em comum: a educação midiática - que requer tempo e que, por isso, precisa começar já…
Desde o seu surgimento, a ciência é, por definição, uma prática que começa pela dúvida e termina na comprovação de fatos. Seu método funciona assim: o cientista identifica uma questão e elabora perguntas sobre ela - por que acontece, de que forma, quais são seus efeitos…. Em seguida, formula hipóteses, testa e verifica se com elas consegue ou não comprovar o fato. É a partir da dúvida que a ciência se move, e é a partir da comprovação de fatos que ela produz novos conhecimentos. O ponto curioso e preocupante é que, nos tempos atuais, a dúvida também tem servido para deslegitimar a ciência, seus métodos e suas descobertas.
Nas redes sociais e aplicativos de mensagem, a suspeição paira como causa e efeito de teorias conspiratórias, narrativas negacionistas e conteúdos desinformativos. Para alguns, o rigor da comprovação racional já não tem valor e simplesmente cada um acredita naquilo que deseja acreditar. Mas por que? Por que acreditamos somente naquilo em que queremos acreditar?
Essa é a pergunta-guia de Ciência e Pseudociência, livro de Ronaldo Pilati, que logo no início da entrevista responde: “Em termos psicológicos, uma das explicações para isso está num mecanismo chamado raciocínio motivado. Do ponto de vista cognitivo essa é uma ferramenta importante à qual recorremos com frequência. Por outro lado, é muito utilizada para justificar crenças que o indivíduo tem sobre determinado assunto, mesmo que haja elementos fáticos evidentes contra elas”, diz Pilati. 
Ao utilizar desse mecanismo, a pessoa tende a mencionar como desqualificados e menos importantes os elementos que deseja recusar, e como verdadeiros e confiáveis os que pretende defender. O objetivo com isso é manter uma base de suporte mínima às suas crenças, estabelecendo o que o psicólogo chama de balanço cognitivo. “Esse balanço permite que o indivíduo se mantenha em um diálogo com outra pessoa ou desista dele, caso julgue as diferenças como incompatíveis. É isso o que vemos acontecer em interações e discussões políticas de grupos de WhatsApp, Facebook e outras redes sociais - muitas vezes rompidas entre partes que estão predispostas a discordar entre si”, explica. 
Para Ana Regina Rêgo, outro aspecto que ajuda a explicar o quadro é o valor dado às crenças, que têm sido estabelecidas como espécie de critério de verdade no mundo atual. “Os sistemas míticos, sistemas de crenças, sistemas baseados na experiência sempre estiveram em confronto ao longo da história disputando o lugar da verdade”. Segundo a pesquisadora, o que temos de diferente e de novo nas últimas décadas é uma substituição dos sistemas de referência modernos, baseados na razão por um novo modelo em que o que predomina é a emoção.
“Por isso, campos antes produtores de verdade, como o do jornalismo, do direito e da ciência, têm perdido credibilidade. A adesão à desinformação se dá, não a partir de evidências comprobatórias, mas de crenças emocionais nas quais os indivíduos já estão predispostos a acreditar”, explica Rêgo, que aborda o tema em “A construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas”, livro escrito em parceria com Marialva Barbosa, editado pela Mauad X (2020). 
Pilati argumenta que apesar da relevância, é preciso considerar outros fatores para além da valorização das crenças. “A noção de crença sozinha não dá conta de explicar a adesão à desinformação em curso. Apesar de ser algo associado ao indivíduo, a crença não acontece sem estar articulada ao social. É muito importante a dimensão compartilhada de uma crença, porque as pessoas não acreditam em nada isoladamente. Isso se dá a partir das interações sociais e coletivas que elas vivem”, aponta. 
Desinformação nas redes: um negócio lucrativo 
Além de local, o compartilhamento de desinformação é hoje um fenômeno mundial. Como explicar tamanha amplitude? “Hoje, existem dois fatores que tornam a desinformação um fenômeno global e com uma configuração inédita se compararmos a outros períodos históricos: de um lado, a crença e a convicção emocional, e de outro, a velocidade e o alcance estrondoso das plataformas digitais”, aponta Ana Regina. Na sequência, Ronaldo Pilati sinaliza um ponto importante: é fato que as redes sociais foram incorporadas ao dia a dia. No entanto, isso não significa dizer que seu funcionamento seja tão bem conhecido pelos usuários. “As tecnologias de programação e os algoritmos são a ponta. A base do negócio, o que está sendo comercializado pelas plataformas é o comportamento digital das pessoas, e não podemos perder isso de vista”, diz ele. 
Para extrair padrões de comportamento e consumo, as plataformas procuram manter os usuários conectados. Para isso, priorizam determinados conteúdos. E quais seriam eles? “Aqueles capazes de manter a atenção do usuário, aqueles com maiores taxas de engajamento. Por essa lógica, desde que mantenha a pessoa conectada, pouco importa se um conteúdo é desinformativo ou não”, explica Ana Regina. A jornalista conta ainda que, apesar de as políticas das plataformas alegarem estar atentas e vigilantes à desinformação, elas têm lucrado com esse tipo de conteúdo. “Uma pesquisa do MIT de 2018 mostra que conteúdo desinformativos tem cerca de 70% mais chance de viralizar do que uma informação verdadeira”, explica ela, em tom de preocupação. 
Nos últimos anos, empresas e profissionais vêm investindo de forma massiva na produção e distribuição de conteúdos desinformativos, dando origem ao que se tem chamado de “indústria da desinformação”. “Esses conteúdos entram numa composição narrativa e estética específica, vão para a rede e disputam a atenção dos usuários. Esses sistemas de circulação de informações permitem o encontro dos pares e das crenças. Nas redes há uma segmentação das narrativas e se criam ali verdades únicas”, descreve Regina.   
Nesses moldes, a desinformação tem se tornado simultaneamente terreno lucrativo e instrumento político perigoso. “Terraplanistas, monarquistas e negacionistas de todo tipo estão ganhando muito dinheiro com a desinformação. Pela quantidade massiva de conteúdos acabam conseguindo acessar eventualmente algumas crenças da pessoa que está ali assistindo, lendo, enfim, consumindo. Ao ser tocada, essa pessoa por vezes rejeita, mas em outras, se identifica com o conteúdo e tende a se engajar, passando a fazer parte daquele determinado movimento ou incorporando aquela visão de mundo”, argumenta Ana Regina.
Do déficit na formação aos perigos da fake science
Mas não é apenas o uso constante das redes que favorece a adesão a conteúdos falsos. Durante a conversa, déficits ligados à educação e à ausência de uma formação crítica aparecem como pontos a considerar. Ana Regina menciona, por exemplo, a falta de percepção histórica, capaz de nos deixar mais vulneráveis à desinformação. “Há uma falta de conhecimento e consciência do passado e de como os fatos históricos se dão. Isso cria um buraco e faz com que sejamos facilmente preenchidos por narrativas e informações que correspondam àquilo que desejamos acreditar ou que já acreditamos e queremos que seja reforçado - mesmo que se trate de argumentos pseudocientíficos", afirma ela.
E o que seria exatamente a pseudociência? Ronaldo prontamente esclarece. “Em linhas gerais, pseudociência é esse campo de afirmações que emula a ciência defendendo evidências já derrubadas há tempos pela comunidade científica”. Também conhecida como fake science (ciência falsa), esse tipo de conteúdo é hoje uma das principais estratégias de desinformação. 
Para Pilati, muito do sucesso da pseudociência se deve à nossa falta de entendimento sobre o que é e como se faz ciência. "O nível de compreensão sobre isso é muito baixo na população em geral, não só no Brasil mas no mundo como um todo", destaca. 
Indagado sobre possíveis soluções, ele argumenta que seria preciso mudar o foco de como o pensamento científico é ensinado nas escolas. “Apesar de muito avanço, ainda estamos distantes de ter uma formação educacional básica que permita às pessoas desenvolverem um pensamento científico. Para que elas não entendam apenas um conceito científico, mas, sim, como é que os conceitos ganham validade científica. Se esse desenvolvimento não acontecer, a gente vai continuar à mercê dessa incompreensão generalizada”, defende.
Para os dois entrevistados, o vetor educacional é uma das lentes possíveis para entender a aderência à desinformação, mas engana-se quem pensa que a classe ou o nível de ensino formal de um indivíduo determina diretamente sua relação com esses conteúdos. Pessoas pertencentes a classes mais altas, com níveis de escolaridade mais avançados também são alvo e replicadoras de desinformação. 
Um exemplo citado por Pilati mostra que nem sempre a crença em desinformação é sinal de ignorância ou baixa escolaridade. “Algumas narrativas falsas exigem altos níveis de abstração para serem comunicadas e compreendidas, tamanha supressão de fatos coerentes. Ou seja, as fake news muitas vezes requerem não ignorância, mas um acúmulo intelectual que possibilite ao sujeito fazer quase que malabarismos cognitivos para que sua ideia faça algum sentido”, diz. Esse costuma ser o caso dos conteúdos desdobrados de temas como o terraplanismo, ou ainda, as teorias ligadas à curas quânticas, por exemplo.
Ainda sobre educação, Ana Regina observa que diferentes grupos sociais têm diferentes “dietas de mídia” e são expostos de maneiras variadas à desinformação. “Uma pessoa que vive em uma localidade mais isolada, às vezes tem um telefone pré pago, que só dá acesso a aplicativos de mensagem e a grupos fechados. Quando entram em qualquer zona de internet, tendem a consumir os conteúdos que chegam por esses meios - que são os únicos e, consequentemente, acabam se expondo à desinformação. Inclusive, essa é a cadeia informativa utilizada pelo atual governo, chamada pelo presidente de ‘nossos meios de comunicação’”, ironiza Ana Regina.
Educação midiática para quem? 
Ronaldo e Ana Regina são unânimes ao apontar a educação midiática como ferramenta-chave no combate à desinformação. Para o psicólogo, o assunto não tem sido tratado pela sociedade com a urgência que a questão exige e menciona ainda os riscos da naturalização das tecnologias como ferramentas ilimitadas. “Nesse ponto, a dificuldade recai principalmente na relação com crianças e idosos: de um lado, um grupo que nasceu imerso em telas e do outro, uma parcela da sociedade que não é capaz de aderir intuitivamente às novas tecnologias. Então, como lidar?” 
Para Ana Regina, a educação não tem que ser apenas digital, mas midiática de modo mais amplo - em termos de suporte, o que inclui práticas de leitura e interpretação da mídia fora das telas, e em termos de público. “Temos toda uma faixa social que carece desse olhar mais crítico para os meios digitais. Temos um processo entre jovens e adultos que é a gamificação da vida, com avatares virtuais, multiverso e outras novas tecnologias que são transformadoras do próprio olhar que os indivíduos dão ao mundo hoje. Sem senso crítico, a tendência é que sejamos levados a um lugar de maior imersão nesse processo, ficando mais vulneráveis à desinformação”, opina. 
Refletindo sobre o papel da educação, o desfecho da conversa se dá em tom de autocrítica. Tanto Ana quanto Ronaldo concordam ao dizer que professores, pesquisadores e até mesmo jornalistas necessitam ser submetidos a processos de educação midiática.Eu, por exemplo, que sou jornalista e trabalho checando e pesquisando desinformação, caí numa recentemente, quando fui fazer uma compra no site que simulava ser uma loja de departamento, uma das maiores do país. E isso porque estou treinada para identificar, mesmo assim não escapei. E quem não está, como faz? Precisamos agir hoje”, encerrou Ana Regina Rêgo. 

Ana Regina Rêgo | Criadora e coordenadora da Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCd). Professora da Universidade Federal do Piauí, é doutora em Processos Comunicacionais pela UMESP, com estágio de doutorado na Universidad Autónoma de Barcelona; e pós-doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. Tem pesquisa nas áreas de História da Comunicação, Memória, Narrativas da Comunicação, Jornalismo e Desinformação. É autora de “A construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas”, em parceria com Marialva Barbosa, pela Mauad X (2020).
Ronaldo Pilati | Doutor em Psicologia e professor de Psicologia Social na Universidade de Brasília. Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP). Sua área de interesse é a Cognição Social, com foco em racionalidade e irracionalidade humana. Realiza pesquisas científicas sobre temas como moralidade, comportamento pró-social, desonestidade e influência da cultura no comportamento. É autor de “Ciência e Pseudociência: por que acreditamos apenas naquilo em que queremos acreditar”, pela Editora Contexto (2018).

Produzido por Dominique Gogolevsky
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Tipo de Conteúdo: Abre aspas
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