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Liberdade de expressão: entender o conceito e seus limites é decisivo para não distorcer o tema
23.02.2023 - 17h14
Rio de Janeiro - RJ

Um jovem, em um shopping em Caruaru, no ano de 2021, alegou ‘liberdade’ para usar uma peça de roupa com o símbolo da suástica, o que confere apologia ao nazismo, um crime. Um ano antes, em 2020, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub disse à Polícia Federal não ter sido racista após comentários feitos por ele sobre chineses e coronavírus. Segundo Weintraub, suas críticas eram legítimas manifestações da liberdade de expressão. Após a tentativa golpista de 8 de janeiro, o debate sobre o tema e seu apelo para cometer atos criminosos, como incitação ao ódio, racismo e apologia ao nazismo ganhou novos contornos. 
No Brasil, a liberdade de expressão é garantida pela Constituição. No artigo 5º, que trata dos direitos fundamentais do cidadão, o inciso IV define que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" e o IX prevê que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". 
Apesar das nítidas descrições, o conceito de liberdade de expressão permanece sendo objeto de dúvida e, por vezes, distorção, dentro e fora das redes sociais. Na visão da pesquisadora Helena Martins, dois aspectos explicam o porquê: a falta de entendimento dos limites de um direito e a relação que os brasileiros desenvolveram com os veículos de comunicação e mídia ao longo da história. 
"Há uma disputa da própria ideia de liberdade, que acompanham a história da democracia. A liberdade é aquilo que está pactuado, que não infringe outros direitos, não avança sobre aquilo que a sociedade definiu como condutas possíveis ou não", explica Martins. 
Nesse sentido, é importante entender que todo direito constitucional tem um limite: o respeito ao exercício dos demais direitos, comuns a todos e definidos coletivamente pelas leis. "Em qualquer contexto, o limite da liberdade de expressão é o limite da violação de direitos. Incitação à violência e racismo são crimes. Tudo que é crime não é liberdade de expressão. No Direito, isso fica muito claro, porque há um entendimento de que os direitos são interdependentes, portanto, não há um quando o outro é violado", explica Martins. 
A especialista lembra que essa visão vale tanto para ações e declarações feitas nas redes online, como também no mundo offline.  
Ao criticar a eventual moderação de conteúdo por parte das plataformas - quando diminuem o engajamento de postagens antidemocráticas e violentas - figuras da extrema direita não estão defendendo a liberdade de expressão, afirma a pesquisadora. "A extrema direita se apropriou muito da ideia de liberdade de expressão, mas está defendendo na verdade a liberdade de cometer crimes sem responsabilização". 
Circulando pelas redes, é comum encontrar publicações que desconsideram os limites e transformam a liberdade de expressão em salvo-conduto para promover gestos discriminatórios e discursos de ódio. Um exemplo dessa tentativa de argumentação enviesada está na declaração do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG). 
No início de fevereiro, o parlamentar foi acusado de injúria racial depois de afirmar, em uma entrevista ao jornal Estado de Minas, que iria chamar a deputada e mulher trans, Duda Salabert (PDT-MG), pelo pronome masculino "ele" na casa parlamentar. Após a acusação, Ferreira declarou em nota: “Acredito na Justiça e sei que jamais pratiquei nenhum crime contra ninguém, tendo apenas feito uso da minha liberdade de expressão”.  
Apesar de garantir que todo cidadão tenha liberdade para se expressar, a legislação brasileira prevê que ele seja responsabilizado por suas declarações. "Você pode até falar que vai ter golpe, defender o golpe. Se a fala incorrer em crime, você vai ser responsabilizado pelo que falou", observa. 
Relação com a mídia 
Percepções das plataformas e redes sociais como terra de ninguém, comum entre representantes da extrema-direita, são um sintoma da relação que a sociedade brasileira desenvolveu com a mídia e os meios de comunicação. "Temos uma má compreensão social sobre a importância da regulação da mídia. Historicamente, a gente lidou muito mal com esse processo de discussão sobre a comunicação. No Brasil, a regulação sempre foi vista como censura, por exemplo", ferramentas totalmente opostas, argumenta Helena. 
Junta-se a isso o passivo deixado pela ditadura militar. "Temos um país que vivenciou há poucas décadas uma ditadura que realmente proibiu a liberdade de expressão e manifestação. Ao invés de, com a democracia, pensar caminhos para favorecer essa liberdade, a gente acabou ficando refém daquilo que os empresários definem como liberdade, daquilo que eles concedem", afirma. 
A concentração de poder que marcou o cenário da radiodifusão brasileira em décadas passadas, agora tende a se repetir nas grandes plataformas como Facebook, Instagram, Twitter e Google, mas de forma bem mais grave, globalizada. E há motivos para se preocupar, já que segundo Martins, "temos uma arquitetura institucional muito pouco preparada para lidar com a liberdade de expressão, principalmente no âmbito da internet". 
Como exemplo, ela cita o debate envolvendo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições de 2022 e os atos golpistas de 8 de janeiro. "O que a gente está vendo é uma ausência de mecanismos para organizar essa avaliação de liberdade de expressão no âmbito das redes e isso acaba levando à possibilidade de algum abuso do próprio judiciário", alerta. 
A falta de uma legislação consistente  
A Internet surgiu com a expectativa de ser um instrumento democrático, o que aconteceu até certo ponto: pessoas gravando seus vídeos, publicando em seus blogs, mobilizando local e globalmente seus projetos e fazendo o conteúdo circular mais do que se ele dependesse de um sistema de radiodifusão, que tem uma rede muito mais fechada. É fato. 
Hoje, o domínio é das plataformas digitais, modelos concentrados, onde as regras são definidas unilateralmente pelos próprios donos dos aparatos. É o caso do Twitter, comprado pelo multimilionário Elon Musk, sob o argumento de defender a liberdade de expressão dos usuários na plataforma. 
E se por um lado as redes parecem ampliar as liberdades e o acesso à informação, por outro têm mostrado que podem ser uma ameaça real à própria democracia. "Hoje estamos sujeitos à chamada mediação algorítmica, em que o Facebook escolhe o que você vai ver e quem vai ver o que você publica e isso se dá de maneira absolutamente opaca. É uma liberdade de expressão muito aparente, porque o que temos na verdade é um circuito cada vez mais limitado", argumenta.
Na polarização que toma conta das redes, misturam-se ainda diferentes noções de liberdade de expressão, em especial aquelas envolvendo a legislação brasileira e a estadunidense, cujos princípios são distintos, mas que, vira e mexe, acabam usados pelos analistas de plantão como se fizessem parte de uma mesma estrutura constitucional. Foi justamente esse o erro do jornalista Glenn Greenwald, ao criticar as decisões do ministro Alexandre de Moraes em relação aos atos golpistas de janeiro
"Os Estados Unidos têm uma visão muito liberal. Lá a conduta é muito mais de abrir e não ter nenhuma possibilidade de impedimento a essa liberdade de expressão, que eles colocam como um pilar na organização da sociedade", explica.
Para Helena Martins, a centralização das decisões de Moraes não foram as ideais, mas as melhores possíveis em um momento de ameaça concreta de golpistas ao Estado Democrático de Direito. "Espero que, passado esse momento emergencial, a gente possa ter de fato um debate legislativo que organize esse campo, com órgão regulador, procedimentos mais claros, para que a gente não fique dependendo de decisões judiciais", diz Martins.
Debater direitos para reduzir desinformação 
Na posição de educadora, Helena Martins indica que a melhoria nas discussões envolvendo liberdade de expressão contribuiria para a redução da circulação e consumo de desinformação. Isso porque, segundo ela, o quadro de desinformação no Brasil tem ligação direta com o histórico de concentração de poder e ausência de compreensão sobre o funcionamento da mídia e instrumentalização da informação por parte de alguns agentes políticos e econômicos. 
"Uma das medidas de longo prazo para combater a desinformação é promover a informação, e isso passa por garantir a liberdade de expressão. Se a gente tivesse mais gente, mais pluralidade, mais diversidade, mais informação qualificada, talvez a gente pudesse ter uma sociedade mais resiliente em relação à desinformação", opina. 
Os últimos anos, porém, apontaram para o caminho contrário. "Não coincidentemente a gente teve aqui no Brasil a mídia sendo atacada, mas também a educação. E em um ambiente midiatizado como o que temos hoje, essas coisas estão ainda mais vinculadas", diz. 
O que esperar do novo governo? 
Na visão de Helena, o Brasil irá avançar no debate envolvendo regulamentação das plataformas, já que essa é a tendência no cenário internacional. "Vários países já têm aprovado regras que reorganizam o ambiente digital", diz. É o caso do Digital Services Act (DSA) e do Digital Markets Act (DMA), coordenados pela Comissão Europeia.  
"Como essas plataformas funcionam em âmbito transnacional, elas vão acabar passando por essas adequações e isso vai impactar também a forma como elas operam no Brasil. As últimas medidas que temos visto estão muito relacionadas ao combate ao golpe, ao golpismo nas redes, à possibilidade de fazer investigações e obter mais dados, que é uma dimensão muito importante", completa a especialista. 
"O que a gente vivenciou no 8 de janeiro passa pelo que vivenciamos nas redes sociais, mas muito para além disso, precisamos ter um debate social que resulte numa lei de uma forma muito mais complexa, que organize o ambiente de comunicação como um todo, inclusive as plataformas digitais e a própria radiodifusão. E essa embocadura mais ampla, eu realmente espero ser surpreendida de ver acontecendo, porque infelizmente, nosso país nunca enfrentou o tema da comunicação dessa forma", conclui. 
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