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Proibição de uso do celular em aula reacende debate sobre limites do uso da tecnologia
21.09.2023 - 14h27
Rio de Janeiro - RJ
No dia 7 de agosto passado, a Prefeitura do Rio de Janeiro publicou no Diário Oficial o decreto 53.019/23 proibindo o uso de aparelhos celulares durante as aulas da rede municipal de ensino, ainda que permitindo seu uso para fins pedagógicos ou por alunos com necessidades especiais.
A proibição dos aparelhos móveis é somente um aspecto de uma discussão maior e mais antiga sobre uso de tecnologias em sala de aula, mas que ganhou grande reverberação por conta do atual e igualmente polêmico debate sobre o uso de chatbots com inteligência artificial (IA) generativa - o ChatGPT é um dos mais populares - por alunos de todos os níveis educacionais. 
O tema é sempre divergente: professores aprovam a medida porque consideram desigual a batalha pela atenção dos alunos com aparelhos que permitem o acesso a aplicativos e redes sociais que foram desenhados justamente para monopolizar a atenção das pessoas. Tudo fica pior em gerações que já nasceram digitalizadas, mas sem terem mediação sobre o uso de tecnologias. Outros temem que a proibição, pura e simples, sirva apenas para livrar o corpo docente das escolas de um problema real, sem que as possibilidades da tecnologia sejam de fato exploradas.
Por fim, e talvez por conta desse sentimento, um terceiro grupo acredita que a proibição precisa ser acompanhada de programas de treinamento de professores em relação às novas tecnologias, uma necessidade tão urgente quanto entender o papel do celular na educação.
Mas a falta de políticas públicas claras, regulamentações unificadas e treinamento de professores e coordenadores pedagógicos sobre tecnologias nas escolas vêm sendo apontados por especialistas como questões complementares que tornam proibições, ainda que bem intencionadas, uma situação que mais afasta do que aproxima a escola do uso de  tecnologia como ferramenta pedagógica. Afinal, se a escola é o espaço para mediar questões sociais do mundo com os jovens, como retirar exatamente um aparelho que faz parte do cotidiano?
O professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Daniel de Queiroz Lopes, doutor em informática na educação e um especialista em aprendizagem em ambientes digitais, é um dos que acompanham esse dilema, já que os aparelhos são banidos nas escolas estaduais gaúchas desde 2008
"Tempo de tela é um ativo importante hoje para as plataformas, que estão menos preocupadas em questões educacionais e mais em capturar a atenção das pessas", diz ele. "Até mineração de bitcoin conta com isso, mas a proibição, que sempre foi uma maneira de atiçar a curiosidade das pessoas pelo proibido, não vai funcionar se não for acompanhada de treinamento do corpo docente nos possíveis usos pedagógicos dos aparelhos celulares, o que deveria ser a maior preocupação". 
Lopes cita o Projeto Um Computador por Aluno (UCA), uma iniciativa do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, em parceria com os governos dos estados, que em 2009 buscava distribuir laptops aos alunos da rede pública de ensino. Ainda que hoje sem grande relevância, o projeto enfrentou percalços, mas o especialista o considera um avanço. 
"Houve problemas para tirar da escola o laptop por conta da violência, mas o corpo educacional avançou no conhecimento de aplicativos pedagógicos, ainda que limitados, para não roubar a atenção dos alunos com coisas como games. Em 10 anos, houve um ou dois casos de acesso indevido a aplicativos nos laptops, mesmo assim por acidente", afirma.
"Mas, o ponto é que proibição, simplesmente, prejudica a formação do professor com ferramentas digitais, um projeto que deveria ser prioritário. Pior: sem uma iniciativa mais ampla de discussão que envolva o uso de tecnologia na educação, o preço alto da economia da atenção, como o tempo de tela afeta a saúde mental dos alunos, inclusive com o risco de adicção, nós estamos perdendo a conversa para as Big Techs e as empresas de telefonia", completa Lopes.  
Ferramenta pedagógica sem uso
O pedagogo, professor da rede estadual do governo do Amapá e especialista em Mídias na Educação, Marley Guedes, concorda. Em 2012, Guedes escreveu a monografia "O uso do aparelho celular em sala de aula" na pós-graduação da Universidade Federal do Amapá e já estudava os casos de proibição e seus múltiplos efeitos no aprendizado.
"É certo que os níveis de percepção do celular são diferentes nas escolas", diz ele. "Há um grupo que os encara como uma distração e outro os encara como ferramentas úteis e populares para a educação. A proibição só resolve o primeiro aspecto. O segundo permanece sem ser resolvido, especialmente quando 90% dos professores do ensino básico não usam o celular como ferramenta pedagógica".   
Guedes lembra que, durante sua pesquisa, percebeu inúmeros conflitos entre professores, alunos e os pais por conta da manipulação do celular durante a aula, mas em muitas escolas do estado, o problema não existia por uma circunstância mais simples, mas não de todo incomum num país tão grande quanto o Brasil: não havia acesso à banda larga. E há outras questões. Nas escolas onde havia acesso, conta ele, a proibição do celular foi muitas vezes motivo de queixa dos pais, que percebiam a medida como uma forma de impedir o acesso imediato às crianças.
"De alguma forma, muitos pais viam nos celulares uma forma de localizar os filhos e entrar em contato com eles quando fosse necessário, talvez se esquecendo que telefones fixos das escolas ainda existam. Muitos pais consideram os celulares uma forma de distração para crianças e a cena é muito comum em restaurantes, mas parecem não entender a dificuldade de capturar a atenção dos alunos com um celular na mão nas escolas", explica Guedes.
Fator de distração só de estar próximo
Em recente monitoramento global sobre educação e tecnologia, intitulado "A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?", a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) constata que um em cada quatro países do mundo hoje proíbe ou tem políticas sobre o uso do celular em sala de aula. Finlândia e Holanda são os mais recentes.
No estudo, constata-se que a tecnologia, quando não está sendo usada como ferramenta pedagógica, pode ser uma distração: "Dados de avaliações internacionais em larga escala, tais como os fornecidos pelo Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Programme for International Student Assessment – PISA), sugerem uma correlação negativa entre o uso excessivo das Tecnologias de informação e comunicação (TIC) e o desempenho acadêmico. Descobriu-se que a simples proximidade de um aparelho celular era capaz de distrair os estudantes e provocar um impacto negativo na aprendizagem em 14 países", indica o relatório.  
O professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Alexandre Farbiarz, um especialista em ambientes digitais para a educação, afirma que a simples proibição é mais problema que solução. Para ele, a medida livra o professor de um problema mas não o estimula na adoção de tecnologia em sala de aula para o aprendizado, o que o pesquisador considera como retrocesso.
"É preciso entender que o processo de conhecimento e de aprendizado das novas gerações já é completamente moldado pelas novas tecnologias, especialmente as móveis", destaca Farbiarz. "O que significa que o modo de uso de celulares e laptops são muito diferentes do conhecimento adquirido na leitura tradicional de um livro ou de um jornal. O foco no celular é mais disperso e dinâmico. Tudo isso é para dizer que, se há o desenvolvimento de novos formatos de conhecimento e saberes, a educação precisa desenvolver competências e ferramentas pedagógicas que lidem com essa realidade. Mas a proibição não resolve isso. O Japão é um país que não sofre deste problema porque a educação já é feita num smart board. O problema está no mau uso da tecnologia, como de resto no mau uso de qualquer coisa".
Menos restrições, mais ações pedagógicas
A professora da Fundação Getulio Vargas (FGV EBAPE) e gerente-executiva do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE), Tassia Cruz, afirma que legislações restritivas  são uma consequência da lentidão de governos na formulação e aplicação de políticas públicas para o uso de tecnologia em sala de aula. E que o tema precisa ser encarado de forma menos segmentada e mais coordenada. 
"Quando se fala em uso de tecnologia em sala de aula e políticas públicas, torna-se necessário pensar não somente em legislação restritiva, mas também em orçamento público com destinação específica para tecnologia, em formação de professores para uso de tecnologia como ferramenta pedagógica, em infraestrutura para acesso à banda larga de internet nas escolas e em tornar ferramentas tecnológicas disponíveis, ou seja, laptops, programas, PCs e celulares para alunos que não tenham recursos para acessá-los", diz ela. 
"A proibição é tentadora, até porque as telas são muito viciantes, mas este tipo de lei acaba retardando as ações necessárias para fazer a virada da educação para bases tecnológicas".  

*Gilberto Scofield Jr. é Consultor em Educação Midiática e Digital da Lupa e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas da UFRJ

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