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Entrevista
David Nemer: ‘Guerras são o terreno propício para a disseminação de desinformação’
20.10.2023 - 15h44
Rio de Janeiro - RJ
Autor do livro "Tecnologia do Oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil" e vencedor do Prêmio Marcel Roche, o professor da Universidade de Virgínia vê com desconfiança as medidas anunciadas pelas plataformas para tentar reduzir a quantidade colossal de desinformação a respeito do conflito entre Israel e a Palestina: "Essas medidas ajudam, mas são limitadas na sua eficiência, já que essas plataformas não estão dispostas a comprometer seus modelos de negócio. E são esses modelos uma das causas principais que permitem essa avalanche de desinformação em grandes tragédias, como o conflito no Oriente Médio".
David Nemer é professor associado do Departamento de Estudos de Mídia e docente afiliado do Departamento de Antropologia e do programa de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Virgínia. Ele também é professor associado do Berkman Klein Center for Internet and Society (BKC) e pesquisador visitante do Institute for Rebooting Social Media - ambos na Universidade de Harvard. Seus interesses em investigação e pesquisa incluem uma interseção entre os estudos de Ciência e Tecnologia, Antropologia da Tecnologia, Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento e a Interação entre humanos e computadores. 
O interesse entre conflitos sociais e redes sociais fizeram-no se debruçar sobre a guerra no Oriente Médio. Um post seu sobre as notícias falsas a respeito de 40 bebês degolados em Israel pelo Hamas teve milhares de impressões e centenas de comentários, contra e a favor, ainda que a análise feita por Nemer se restringisse ao fenômeno comunicacional da desinformação. "Guerras são o terreno propício para a disseminação de desinformação. Já foi assim na Ucrânia, mas como a diáspora judaica se espalha pelo mundo todo, uma desinformação sobre o conflito entre israelenses e palestinos toma uma proporção gigantesca, provoca uma polarização idêntica e acaba se transformando também numa guerra de narrativas", diz ele.
Nessa entrevista, Nemer analisa o fenômeno e fala sobre as medidas de controle de desinformação anunciadas no dia 15 de outubro para tentar frear a desinformação a respeito da guerra no Oriente Médio pelas plataformas de redes sociais.
Meta e TikTok anunciaram no fim de semana do dia 15 medidas para tentar frear a grande quantidade de desinformação a respeito do conflito entre Israel e Palestina em seus ecossistemas. Será eficaz? 
Meta e TikTok citam ações como criação de centros de operações especiais, moderação de conteúdo em hebraico e árabe e cooperação com agências de checagem. Essas medidas ajudam, obviamente, mas não eliminam o problema. São limitadas na sua eficiência, já que essas plataformas não estão dispostas a comprometer seus modelos de negócio. E são esses modelos uma das causas principais que permitem essa avalanche de desinformação em grandes tragédias, como o conflito no Oriente Médio.  
O senhor defende medidas mais abrangentes? 
Certamente. Guerras são o terreno propício para a disseminação de desinformação. Já foi assim na Ucrânia, mas como a diáspora judaica se espalha pelo mundo todo, uma desinformação sobre o conflito entre israelenses e palestinos toma uma proporção gigantesca, provoca uma polarização idêntica e acaba se transformando também numa guerra de narrativas. A gente precisa entender que uma das estratégias de desinformação mais usadas são aquelas que apelam para as emoções - geralmente medo e raiva - para desumanizar o outro que se pretende desacreditar. Isso acontece tanto entre os grupos que apoiam Israel quanto com os grupos que apoiam a Palestina. Note que os ataques terroristas verdadeiramente sanguinários do Hamas sobre a população civil de Israel serviu para a produção de conteúdos que desumanizam todos os palestinos, como se todos fossem terroristas e desejassem o fim de Israel. Por seu lado, a resposta desproporcional e pouco cirúrgica de Israel também vem servindo para que grupos pró-palestina desumanizem todos os israelenses e os confundam com uma demonização de Gaza e Cisjordânia produzida por grupos que apoiam o regime de Tel Aviv.

A gente precisa entender que uma das estratégias de desinformação mais usadas são aquelas que apelam para as emoções - geralmente medo e raiva - para desumanizar o outro que se pretende desacreditar.

David Nemer, professor da Universidade de Virgínia

Temos exemplos próximos dessa desumanização?
Temos. Vejam o caso das comunidades periféricas nas grandes cidades brasileiras. Quando as forças de segurança invadem as favelas e matam pessoas inocentes com a ideia de que estão combatendo o crime organizado - tráfico ou milícia -, as redes sociais se enchem de comentários parabenizando o massacre com a lógica de que toda a comunidade é uma antro de bandidos. Há uma clara demonização do pobre nestas comunidades e pouca disposição para entender as nuances de como o universo nas favelas é múltiplo. O contrário também ocorre e toda a polícia é vista como corrupta e truculenta de modo geral. Não há debates nas redes sociais que busquem um meio termo ou são pouquíssimos.     
A guerra de narrativas de tom emocional beneficia as plataformas? 
Não tenho dúvidas. Veja o caso da X, antigo Twitter, que não se pronunciou neste caso e abriga, inclusive, posts de grupos extremistas, porque isso gera mais engajamento e audiência que posts racionais e baseados em evidências. A desinformação circula com muito mais alcance do que a informação verificada. E isso é bom para o modelo de negócios das plataformas, que se beneficia de audiência, atenção e retenção dessa atenção. 
No caso do X, a compra por Elon Musk criou um território sem lei. Escritórios de moderação de conteúdo foram recentemente fechados no Brasil, Irlanda e Cingapura. Nos EUA, o escritório sobre integridade nas eleições foi encerrado com a desculpa, do próprio Musk, de que "não há integridade nas eleições". Ou seja, esses sistemas de moderação de conteúdo nas plataformas, que já não operam a contento nem de forma transparente, estão sendo suprimidos em outras plataformas. 
E onde se acha a verdade nisso tudo? 
As redes sociais começaram como uma espécie de referência para uma oferta de fontes já disponíveis e, de certa forma, confiáveis e foram aos poucos evoluindo, por conta do modelo de negócios baseado em algoritmos e atenção, para uma oferta de fontes com interesses duvidosos. Neste caso do conflito no Oriente Médio, o terreno é fértil para a desinformação polarizante porque o mundo se divide entre a influência da diáspora mundial judaica e o apoio de grupos mais à esquerda e decoloniais aos palestinos. Mas ambos usam as mesmas estratégias de desinformação e isso, pelo imediatismo da mídia, [acaba] respingando em veículos tradicionais. No caso da informação falsa dos bebês israelenses decapitados, o conteúdo foi veiculado pelos portais de "O Globo" e "Band". Achar a verdade exige um trabalho que a desinformação não exige.

A desinformação circula com muito mais alcance do que a informação verificada. E isso é bom para o modelo de negócios das plataformas, que se beneficia de audiência, atenção e retenção dessa atenção.

David Nemer, professor da Universidade de Virgínia

Onde está a saída?
Não há  bala de prata para resolver a desinformação de uma vez. É preciso um pacote de medidas multifacetadas. E as ações precisam vir de governos (legislação), sociedade civil (pesquisadores), imprensa, e principalmente das plataformas. As plataformas devem mitigar o alarde desinformativo em torno de temas muito polêmicos, mas os algoritmos, como eu já disse, priorizam as emoções negativas porque elas retêm por mais tempo as pessoas nas telas, que é, ao fim e ao cabo, o modelo de negócios dessas empresas. Acredito que as plataformas poderiam modelar os algoritmos, nessas circunstâncias. Elas não fazem porque não querem. Ou melhor, porque não há uma legislação que as comprometa com essa ação.
Isso significa que qualquer regulação não pode deixar de levar em conta o modelo de negócio?
Exato. Esse é o desafio. Mas não há nada que impeça que uma regulação leve o modelo em consideração exigir ações contra a desinformação, como mudanças nos algoritmos em situações graves e de interesse público ou um investimento obrigatório, maciço e transparente em moderação do conteúdo. Veja o que fez a Frances Haugen (ex-engenheira da computação do Facebook), cujo depoimento no Congresso americano não deixou dúvidas sobre a necessidade de regulação das plataformas.
Nesse contexto, qual é o papel da educação midiática?
É importantíssimo, tanto quanto o papel da educação de um modo geral. Em eventos como esse, é obrigação de vários atores nas redes e fora delas explicar os conceitos sobre os vieses que existem de um lado e de outro do conflito, inclusive na cobertura midiática normal. Mas também é obrigação das instituições, do governo, das míidas, das instituições buscar ensinar, via redes e nas escolas, sobre as origens do conflito, o que é sionismo, a formação do Estado de Israel e o Holocausto, a situação dos palestinos no território, enfim, a História como costumávamos aprender.
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Tipo de Conteúdo: Artigos
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