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Gíria, preconceito e gatilho: como uma fala no BBB pode desinformar o público
05.02.2024 - 17h54
Rio de Janeiro - RJ
Enquanto reações instantâneas e informações fragmentadas dificultam, comunicação não violenta pode melhorar o aproveitamento de assuntos levantados pelos participantes da casa
Crédito: Divulgação / TV Globo
O impacto da fala de um participante no Big Brother Brasil (BBB) é capaz de produzir efeitos consideráveis e desinformativos. Em tempos de redes sociais e opiniões instantâneas, a interpretação de expressões utilizadas em um comentário ou diálogo podem ir desde o uso de meras gírias locais a termos preconceituosos inaceitáveis. 
O fato não é novidade, mas tem ganhado ênfase na edição deste ano. De racismo a capacitismo, passando por homofobia e cancelamento, as palavras e frases podem se reduzir à mera polêmica midiática ou serem aproveitadas de forma educativa para aprofundar pautas sensíveis, como os casos já citados e o próprio poder das redes sociais nessa história."No BBB, temos falas que são gatilhos emocionais. Para o público pode ser um gatilho escutar um homem falar que uma mulher tem que parar de comer e ir malhar, ou ver um homem negro, chamando mulheres negras de 'macacas'", explica Nolah Lima, diretora do Instituto CNV Brasil, especialista em Comunicação Não-Violenta (CNV). 
"Eu sou homem, não sou viado", "seu puto", disse Davi, baiano de 21 anos, após receber votos e ser indicado ao segundo paredão. Na sequência, o brother foi alertado por Michel, outro participante, que é gay, sobre o teor homofóbico da fala. 
Nizam e Davi conversam na casa do BBB. Crédito: Divulgação / TV Globo
Foi nesse sentido que parte dos espectadores interpretou a frase – em que a ideia de homem é associada à superioridade, coragem e força, colocando os demais gêneros e sexualidades como inferiores, covardes e frágeis. Já outra parcela do público, em especial conterrâneos de Davi, defenderam o participante, explicando que as expressões ditas pelo jovem são comumente usadas como gírias na Bahia.  
"A língua que usamos é viva e está em constante mudança. Reflete hábitos, valores e o ambiente em que estamos inseridos. Se estamos em um contexto machista, racista e homofóbico, a língua refletirá isso", afirma Késsia Henrique, professora e doutora em Linguística pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 
Ela explica que o contexto é fundamental para a compreensão do que foi dito, já que uma palavra pode ter conotações diferentes em determinados locais e grupos sociais, utilizada em situações mais ou menos formais, com sentidos que podem variar desde afeto até intencionalidades ofensivas. 
Após o episódio, Davi passou a evitar usar a expressão e afirmou ter aprendido com o alerta do adversário de confinamento. 
"O BBB é um ótimo exemplo para mostrar a mudança da sociedade através da língua. Vemos participantes que se incomodam com falas antes consideradas "normais" e hoje vistas como problemáticas", completa Henrique. 
Linguagem e conflito
Na primeira prova do líder, Maycon sugeriu apelidar Vinícius, que não tem parte da perna esquerda e é atleta paralímpico, de "cotinho", o que gerou desconforto não apenas nos participantes, mas também no público, que entendeu a ação como capacitismo.
Situação semelhante foi vivida por Vinicius em diálogo com Vanessa Lopes. Depois de apertar o botão de desistência do programa, a dançarina do TikTok se despediu do participante. “Você é o tipo de projeto social que eu queria”, disse Lopes, abraçando o paratleta. “Isso que eu queria falar, mas não podia porque achei que iam me julgar”.  Em resposta, Vinicius lembrou: “Eu não morri, não!”.
Expostos na TV e nas redes para milhões de pessoas, os diálogos ganham múltiplas interpretações, gerando debates e conflitos nas redes. "A base dos programas são as relações, e conflitos acontecem. Você está ali, preso numa casa, vai haver conflito", aponta Nolah Lima. 
"Cada participante traz para dentro do jogo uma realidade diferente, inclusive em termos dos usos da língua, que varia de acordo com muitos fatores: idade, região, escolaridade. No BBB, vemos muitos sotaques, gírias e modos de falar, variados. Isso tende a gerar choques linguísticos entre os participantes e também para quem está assistindo", lembra Késsia Henrique. 
"O Big Brother está tornando mais visível coisas que antes eram invisíveis. Por exemplo, uma mulher que vive um relacionamento com uma pessoa que controla o tempo todo o que ela come, e ela achava que isso era normal. Quando isso aparece no BBB as pessoas lá dentro, a edição do programa e a mídia, falam que isso é um problema, essa pessoa pode começar a dar nome às coisas, perceber que aquilo é está sofrendo é uma violência", diz Nolah Lima. 
Ações como observar o contexto, identificar sentimentos, informar necessidades e comunicar o que se deseja de forma objetiva e concreta – ligadas a práticas de Comunicação Não-Violenta podem ser uma saída os conflitos, que no BBB aparecem de forma natural, mas também induzida, como no caso do quadro Sincerão (antigo Jogo da Discórdia), rodadas de voto aberto e sorteios para comentários entre os participantes.  "A Juliette (vencedora do BBB 21), por exemplo, era uma pessoa que tinha conflitos, mas conduzia as conversas de maneira cuidadosa e assertiva", diz Lima. 
Nas redes, muita informação e pouco diálogo
Quando os diálogos viralizam nas redes, a questão ganha complexidade. "Quanto mais rápido o canal de informação, menor a conexão, e as redes sociais são muito rápidas. Hoje, as pessoas assistem a um vídeo de 30 segundos e se sentem informadas. Esse é um dos maiores desafios para uma discussão qualificada", explica Lima. 
Em cortes de vídeos, posts e memes, os conteúdos chegam de forma fragmentada e, muitas vezes, sem contexto ao público que, segundo Henrique, é um dos elementos essenciais em um diálogo. 
"Quando recortamos uma palavra ou frase do contexto, criamos um novo plano de fundo e a mensagem se altera, principalmente quando a conversa envolve termos e temas complexos, como regionalismos e gírias, por exemplo. Isso leva o público a uma interpretação muitas vezes equivocada", diz.
Sincerão da segunda semana de programa gerou bate boca entre Beatriz e Lucas  os participantes. Crédito: Divulgação / TV Globo
Fenômenos mais recentes como o cancelamento e a lacração também aparecem neste cenário como fatores que mexem com o emocional do público. Quase sempre ajudam a reter a audiência, mas não garantem que determinado debate seja útil e saudável. O resultado são os possíveis gatilhos, em quem participa do jogo e em quem assiste. 
"Tudo depende da sua bolha. Então na minha bolha eu vejo muitas pessoas criticando, questionando, apontando, mas tem bolhas onde a forma como a coisa acontece reforça um outro viés. É a questão do viés de confirmação. "Vou buscar aquilo que confirma a minha visão de mundo e outras pessoas estão buscando aquilo que confirma a visão de mundo delas. Esse é o principal problema da rede social como fonte de informação".
Explica que os extremos falam mais alto e reforçam a bolha, dificultando a construção de críticas qualificadas sobre os assuntos. "O que a mídia pode fazer para apoiar o público é conseguir dar mais voz para a crítica construtiva, para a crítica que traz uma reflexão que vai além do ser, além da personalização daquele problema, para ver isso como uma questão sistêmica que nós precisamos olhar. Não é o Luigi, não é o Rodriguinho em si, a Yasmin ou a Vanessa em si, mas a sociedade como um todo". 
Mais importante do que vilanizar os participantes, é importante que o público seja capaz de identificar potenciais casos de violência. "Por exemplo, posso falar que determinado participante está errado, reduzi-lo a determinada fala e acabar cancelando a pessoa. A Comunicação Não-Violenta vai nos convidar a responsabilizá-lo pelo que falou, mas busca criar um diálogo com ele para que se possa refletir sobre o porquê dele estar falando isso. De onde vem isso? Porque isso não é sobre a pessoa, é uma questão estrutural". 
Nolah explica que assim é possível construir uma crítica qualificada, trazendo para o centro da conversa não só a pessoa, mas todo o sistema que leva ela a se comportar dessa maneira. "A vilanização é um caminho que vai dar Ibope, mas que não ajuda no aprendizado. O cancelamento é doloroso, não melhora, e não ajuda ninguém a progredir". 
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Tipo de Conteúdo: Artigos
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