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"Trend do palavrão" engaja, mas expõe crianças e pode ser considerada crime
27.02.2024 - 16h50
Rio de Janeiro - RJ
Crianças trancadas no banheiro e autorizadas pelos pais a falarem palavrões enquanto são filmadas: este é o resumo da trend que viralizou na última semana nas redes sociais, a "trend do palavrão". Iniciada nos Estados Unidos e repercutida no Brasil em tom de humor, a suposta brincadeira tem gerado engajamento, mas pode se tornar um risco à segurança física e psicológica das crianças.  
"A rede social não é um álbum de fotos, é um lugar de comércio. Tudo que está lá é para vender. Estamos enxergando a criança como produto e não como sujeito de direito", afirma Sheylli Caleffi, educadora e ativista pela erradicação da violência sexual online. 
Antes de participar da trend, é importante que os pais reflitam sobre o objetivo dela. "A curiosidade é legítima. A questão é entender a intenção quando escolhemos fazer a brincadeira. Por que optamos por postar, por exemplo? Queremos conhecer mesmo o que nosso filho falaria entre quatro paredes, quais os palavrões que ele conhece, o que ele entende como palavrão? Ou o que queremos é material para ganhar like e engajamento?", questiona Joana London, psicóloga e pedagoga, especialista em educação transformadora. 
Além da incapacidade da criança de consentir sobre sua própria exposição, outro fator preocupante é a confusão que este tipo de conteúdo pode causar na relação com os adultos. 
"Você vai autorizar e ensinar à criança que ela pode, longe dos seus olhos, fazer coisas que você não gosta. Ela aprende e, em outras situações, pensa: vou fazer escondido da minha mãe agora", diz Caleffi. A educadora aponta que este é o principal problema da trend, fora a exposição de criança, que não deveria acontecer. 
Pesquisas apontam 13 anos como a idade mínima para uso das redes sociais. A faixa inclusive é estipulada na política de uso da maioria das plataformas como idade mínima para que um usuário possa criar uma conta. Mas, na prática, 1 em 4 crianças brasileiras já usa internet antes dos 6 anos, o que facilita seu acesso e consumo dos conteúdos de redes sociais. 
Trends com crianças
Não é a primeira vez – e nem será a última – que trends envolvendo crianças fazem sucesso e causam polêmica. Recentemente, no contexto de volta às aulas, vídeos de crianças se arrumando para o primeiro dia de aula viralizaram. 
Ao expor o rosto e informações pessoais de menores, como nome, idade e escola,  adultos violam princípios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a privacidade e a "preservação da imagem e da identidade" das crianças. 
Mesmo com os apontamentos legais, a maioria dos pais e responsáveis ainda trata o filho como propriedade. "Na internet, é comum [adultos] reproduzirem frases como "filho é meu e eu faço o que quiser com ele", aponta Caleffi. 
Os conteúdos também se tornam criminosos, quando comprovada humilhação ou ridicularização da criança, ou ainda se for atestada a monetização do uso das imagens pelos adultos administradores do perfil no qual o conteúdo foi publicado. 
Ao invés de estabelecer um ambiente de confiança entre o adulto e a criança, a brincadeira pode ter efeito contrário. "Primeiro, digo para ela que é algo secreto e, num segundo momento, eu mostro para todo mundo. Sempre dou um exemplo assim: você não vai me encontrar na rua, bater uma foto minha sem eu saber e postar, então por que que a gente faz isso com criança?", questiona Sheylli. 
London chama atenção para famílias muito incomodadas com crianças que descumprem com combinados e que ao mesmo tempo quebram a confiança ao estimularem brincadeiras como a trend do palavrão. "Que mensagem estamos querendo passar nessa relação família e criança?", coloca a psicóloga.  
Ela observa ainda que a internet e os eletrônicos são frequentemente colocados como antídoto para um possível tédio ou tempo livre da criança, quando os adultos não sabem o que fazer. 
Mas a solução não deve ser apenas a negação, mas a proposição de alternativas "Não deve ser o corte pelo corte. É preciso considerar o que essas crianças vão fazer no lugar do tempo que passam na internet e nas telas", diz London.
Adultos também desconhecem os riscos 
O problema se torna ainda mais grave quando a falta de responsabilidade também afeta os pais e responsáveis, que não entendem o risco que estão correndo. "Adultos não nasceram na geração digital, então ainda não têm noção dos impactos e das consequências de ter nossa imagem na rede de maneira indiscriminada", explica London. Por isso, Sheylli Caleffi considera "a Educação digital para adultos urgente".  
Diferente do que acontece com os adultos expostos na internet, crianças não lidam diretamente com dinheiro, contratos ou qualquer bem material que seja afetado caso tenham sua privacidade violada. O alvo do ataque é ainda pior. "A violência contra a criança geralmente é sexual, porque ela não tem dinheiro. O golpe na criança é um golpe que tem a ver com a sexualidade dela. O que vira produto é a própria imagem dela", explica Caleffi. 
De acordo com a psicóloga, é preciso que adultos façam uma revisão de sua relação com os aparelhos e a internet de forma geral para depois fazer com as crianças. "Muitas vezes [as famílias] estão desesperadas com excesso de uso das redes sociais e o tamanho do vício gerado na criança, mas vemos adultos que estão inseridos nesse mesmo contexto: não saem do celular e optam por participar dessas trends", afirma a educadora.
"Os pais dão celulares: não pode quebrar, não pode perder, não pode riscar, mas não falamos dos perigos que tem lá dentro que nem eles sabem. Eles não fazem ideia, muita gente fala que eu exagero. Então eu fico provando para mostrar o quanto é sério, mas ainda tem gente que não entendeu", completa. 
Em 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) implementou a Secretaria de Direitos Digitais, mas o Brasil ainda não tem uma política nacional de Educação Digital, em especial com foco nos adultos. 
Exposição crescente, preocupação tardia
A reação de preocupação vem em um segundo momento, quando os adultos passam a tentar retirar as imagens das redes. A gente tem muitas mães tentando retirar depois que descobrem o que virou a imagem da filha", conta Sheylli. 
Neste cenário, agravado pela alteração de imagens com uso de inteligência artificial, a especialista aponta a urgência de tornar obrigatórias a educação digital e sexual nas escolas – assuntos ligados aos direitos da criança e do adolescente. 
Segundo a educadora, os efeitos negativos na relação das crianças com os pais e responsáveis. Além de problemas envolvendo a saúde mental dos jovens, a especialista aponta que processos movidos por eles contra os pais serão cada vez mais frequentes nos próximos anos. 
Vídeos com crianças muitas vezes podem ser lidos como fofos, mas também tem a possibilidade de virarem memes e serem usados de formas inapropriadas. "Fica difícil consertar isso quando a coisa já se espalhou por toda rede. É um desafio grande as famílias compreenderem que esse fenômeno da viralização tem impactos no futuro da criança", diz London. 
Uma publicação que parece inofensiva pode gerar graves consequências, mesmo anos depois de ter sido produzida. Isso porque, todo conteúdo publicado online gera dados, que podem ser usados por quem é exposto ou tem seus direitos de privacidade violados. 
PL 2.628 avança 
Na última quarta-feira (21), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o projeto de lei (PL) 2.628/2022, que busca proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais. O projeto propõe diretrizes para redes sociais, aplicativos, sites, jogos eletrônicos, softwares, produtos e serviços virtuais, incluindo a implementação de mecanismos para verificar a idade dos usuários. 
O PL 2.628/2022 também estabelece a supervisão do uso da internet pelos responsáveis legais e exige que provedores e fornecedores de produtos online criem sistemas de notificação de abuso sexual, além de oferecerem configurações mais eficazes para garantir a privacidade e a proteção dos dados pessoais.
NOTA DO EDITOR: Até a publicação desta matéria, as plataformas procuradas não responderam a reportagem. Em caso de resposta, conteúdo será atualizado.

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Tipo de Conteúdo: Artigos
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