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O que é sharenting e por que a prática pode ser perigosa?
11.03.2024 - 16h21
Rio de Janeiro - RJ
Apesar de comum, riscos da exposição de crianças pelos pais nas redes ainda é desconhecida pela maioria das pessoas 
Compartilhar fotos e vídeos sobre crianças e filhos é uma prática cada vez mais comum entre os adultos. Pesquisa realizada pela SecurityORG em 2021 sobre hábitos online de pais e responsáveis norte-americanos mostrou que 77% compartilharam imagens, vídeos e conteúdos sobre seus filhos na internet e menos de 25% pediram permissão às crianças para compartilharem conteúdos que as envolviam. 
Os dados revelam um cenário preocupante. De um lado, o alto grau de exposição de crianças. Do outro, a baixa consciência e preocupação dos adultos ao produzirem e compartilharem conteúdos deste tipo na internet, em especial em redes sociais como Instagram e TikTok. 
Apesar de popular e naturalizado, o que pouca gente sabe é que este fenômeno, apesar de recente, já tem nome: sharenting. 
O que é sharenting? 
É a prática de pais e responsáveis de compartilhar fotos e vídeos de seus filhos na Internet. O conceito é a combinação dos termos em inglês "share" (compartilhar) e "parenting" (parentalidade). Os conteúdos de sharenting vão desde crianças em momentos em família, como aniversários, viagens ou atividades de rotina, até registros mais íntimos, que podem ser vexatórios e influenciar negativamente na auto imagem e construção subjetiva do indivíduo exposto. 
A exibição de crianças pelos pais não é uma prática nova. O que muda são as formas de exposição, explica Maya Eigenmann, neuropedagoga e educadora parental. "A criança sempre foi usada como troféu. Antigamente, o que os pais faziam era buscar o álbum de fotos para mostrar a quem estava chegando em casa. Se o filho ganhasse uma competição, o troféu ficava na sala para todo mundo ver. A diferença é que isso se amplificou descontroladamente com a internet". 
Muita coisa mudou e hoje quase toda criança com poucos anos de vida já tem o que se entende por "pegada digital", ou seja, rastros de informações pessoais acumulados nas redes e que podem servir para localizar a trajetória do indivíduo a longo prazo. 
Toda exposição é prejudicial?  
A pergunta divide opiniões entre especialistas. "Se o objetivo é apenas criar memórias, é possível fazer de forma privada. Não preciso postar na rede social. Se for só uma questão de criar memória, podem deixar no celular, imprimir a foto e registrar em casa", argumenta Eigenmann. 
Para o advogado Filipe Medon, "a exposição pode ser positiva sim, mas o compartilhamento deve ser feito de forma segura". Nesse sentido, ele defende a importância de diferenciar sharenting de oversharenting, categoria utilizada para indicar um excesso de compartilhamento e exposição da criança pelos pais. 
A prática infringe a privacidade e a imagem das crianças, direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). "Às vezes os pais podem não expôr quase nenhuma imagem [da criança], mas quando expõem, o fazem com uma situação vexatória", explica Medon, que é professor da FGV Direito Rio e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade da mesma instituição.
"Uma influenciadora colocou a imagem da sua criança com fralda dizendo que ela ainda não tinha desfraldado mesmo já estando com a idade avançada. Essa criança sofreu, aos olhos do público, uma cena vexatória. E a influenciadora falava no vídeo: 'Meu filho ainda não desfraldou. Quando ele dorme fora de casa, ainda precisa usar fralda'. Imagina como esse vídeo é percebido pelas crianças na escola quando ele chega', questiona Medon.  
Benefício eventual, risco iminente
Em outros casos, a exibição de crianças pode render efeitos positivos, ainda que quase sempre acompanhados de pontos também negativos. É o caso de Guilherme Gandra Moura, o "Pequeno Gui", jovem torcedor do Vasco, que ficou conhecido depois de ter recebido o apoio de seguidores no tratamento de Epidermólise Bolhosa. 
Os vídeos de Gui ao longo do tratamento da doença, que é rara, viralizaram nas redes, e a mobilização resultou na Lei Gui, aprovada pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em setembro de 2023, que cria o Programa de Assistência Especializada a pacientes com a doença.
Na direção contrária, o menino, que tem apenas 9 anos, recebeu recentemente ofensas nas redes sociais por uma brincadeira que fez depois de uma vitória do Vasco sobre o Botafogo. Comentários depreciativos de adultos envolvendo sua condição de saúde e aparência física foram frequentes em seu perfil no Instagram.
E se a criança quiser? 
Acostumadas com telas e com o fluxo informacional das redes digitais, não é raro que as crianças de hoje queiram ter sua própria conta no Tik Tok ou canal no YouTube. A questão é: se ela quiser, ela pode? 
Na visão de Medon, o radicalismo tende a ser pouco útil na condução da criança. Para ele, o caminho deve ser o diálogo, cabendo principalmente aos pais mediar a situação. Ele lembra que, "por mais que a criança queira, os pais têm legalmente a autoridade parental e têm que conduzir isso de forma responsável". 
Compartilhamento seguro existe?
Para os especialistas, é fundamental que pais tenham clareza de que a publicação de conteúdos em plataformas não deve ser tomada como procedimento totalmente seguro em termos de privacidade e uso de dados. Apesar de defender ser possível um compartilhamento mais prudente envolvendo as crianças, Filipe Medon reconhece que há limites e que os riscos estão sempre presentes. 
"Quando você posta foto de uma criança, pessoas podem raspar aquela imagem da internet e usar para treinar uma inteligência artificial. Um pedófilo pode pegar aquela imagem, arrancar a roupa da criança e pedir à IA para recriá-la", alerta o advogado. 

"Quando você posta foto de uma criança, pessoas podem raspar aquela imagem da internet e usar para treinar uma inteligência artificial. Um pedófilo pode pegar aquela imagem, arrancar a roupa da criança e pedir à IA para recriá-la".

Filipe Medon, professor da FGV Direito Rio e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade da mesma instituição.

"Não dá para dizer que é 100% seguro compartilhar uma foto online, mas às vezes você coloca do outro lado da balança e existe um lado positivo de se compartilhar, existe a liberdade de expressão dos pais, para que a gente não adote uma postura que seja 100% totalitária de não poder expor nada nas redes sociais", completa o pesquisador, que acredita que o debate ainda é muito marcado por incertezas sobre o futuro. 
Em um passo anterior, Maya Eingenmann chama atenção para a premissa legal do uso das plataformas por crianças. "Levando em conta que no Instagram, legalmente, uma pessoa só pode ter um perfil a partir dos 13 anos, também estamos tendo um embate legal. Não temos crianças em exposição [midiática] desde agora. Temos crianças que foram para a televisão e fizeram fama. Por exemplo, os casos da Larissa Manoela e da Maísa. Mas sabemos também que essas meninas tiveram apoio psicológico, acompanhamento e toda uma estrutura para sustentar essa exposição. Não acho que esse é o caso da exposição na internet. Isso é perigosíssimo", declara. 
Para Maya, redes sociais como Instagram, Tik Tok e a internet de forma geral são vistos pelas crianças como uma realidade muito fantasiosa. "Temos que preservá-la desse mundo fictício, porque tudo é amplificado nesse espaço, seja o ódio das pessoas ou o carinho delas. A criança precisa viver relações verdadeiras e palpáveis, em que converse cara a cara com a pessoa que está brincando".

"O mundo da criança é muito concreto e levá-la para viver no mundo fictício é perigoso, porque essas experiências se tornam uma verdade para ela, mas não representam a verdade. Os adultos tentam filtrar o que é real do que não é real, mas a criança não tem aptidão cognitiva emocional para estar nesse ambiente".

Maya Eigenmann, neuropedagoga e educadora parental

Ainda assim, evitar completamente o sharenting não é uma opção, apontam os especialistas. Além de uma legislação adequada, a solução é conscientizar adultos para que saibam identificar e não expor a criança em situações de vulnerabilidade. 
"Às vezes, os adultos postam a criança chorando, sendo que jamais postariam a melhor amiga em sofrimento e chorando. A criança fazendo birra, gritando ou tendo uma crise não deve ser postada em hipótese alguma. Só podemos postar momentos nos quais as crianças estejam seguras", alerta a neuropedagoga.
Legislação e educação para os adultos
No Brasil, o fenômeno do sharenting ainda não conta com legislação própria. Estão em andamento o projeto de lei (PL) 2.628/2022, que busca proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais, e o PL 4776/2023 , que altera pontos do ECA, com relação ao "compartilhamento e publicação de imagem e informações pessoais de crianças e adolescentes por seus pais e responsáveis, em plataformas online e redes sociais". 
Medon sinaliza a importância da educação midiática e da literacia digital para adultos, que classifica como medidas fundamentais. "As crianças são nativas digitais, mas os pais, em grande maioria, não", diz. 
Segundo ele, na maioria dos casos em que os pais super expõem os filhos, não fazem isso porque ignoram o bem estar das crianças, mas porque não se dão conta do mal que estão causando. "O mais importante nesse tema é levantar as bandeiras e fazer reportagens, eventos, para que as pessoas olhem para isso e vejam: isso aqui é um problema, a gente tem que enfrentar", afirma Filipe. 
Tendência é que processos judiciais entre filhos e pais cresça
No Brasil, ainda não há registros de casos de alguém que tenha sido vítima de sharenting e tenha processado os pais ou responsáveis na Justiça pela exposição. Medon explica que isso se deve à natureza recente do fenômeno. "As crianças que estão começando a crescer dentro desse fenômeno de exposição ainda não atingiram a maioridade. Então a gente ainda não tem esses reflexos". Mas a perspectiva é de crescimento, segundo ele.
Entre casos envolvendo sharenting no Brasil, um dos mais repercutidos foi o do canal "Bel para meninas", no YouTube que, em 2020, teve vídeos retirados do ar a pedido da Justiça, num processo que contou com envolvimento do Conselho Tutelar e do Ministério Público. 
Na época, os pais de Bel, menina protagonista do canal, chegaram a ser acusados de maus tratos e de suposta exposição da menina em situações vexatórias, como fazê-la quebrar um ovo em sua cabeça ou dizer a ela que seria adotada. Hoje, o canal continua ativo, com mais de mil vídeos e já tendo superado a marca de 7 milhões de inscritos.

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Tipo de Conteúdo: Artigos
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