UOL - O melhor conteúdo
Lupa
A crise na Venezuela e o vídeo que viralizou, mas não pôde ser checado
06.05.2019 - 14h00
Rio de Janeiro - RJ
Na terça-feira (30), os fact-checkers profissionais da América Latina acordaram sob os efeitos de um vídeo que o venezuelano Juan Guaidó havia postado nas redes sociais para convocar seus compatriotas e dar início à chamada “Operação Liberdade”. Para o autoproclamado presidente da Venezuela, aquele movimento tinha o apoio das Forças Armadas e encerraria o governo de Nicolás Maduro em questão de horas.
O assunto merecia, portanto, toda a atenção dos verificadores. Por isso, a rede LatamChequea construiu uma iniciativa de colaboração e passou a trabalhar de forma conjunta, trocando checagens e publicando artigos verificados durante toda a jornada sob uma única hashtag, a #VENfacts. O resultado do trabalho feito por Agência Lupa, Ecuador Chequea e Chequeado pode ser visto aqui.
Mas a coluna de hoje é sobre os limites da verificação. Porque eles existem.
Um dos vídeos que mais circularam na terça-feira, uma gravação dramática que mostrava a rendição de militares fardados por companheiros de tropa, não pôde ser checada por ninguém. Todos os fact-checkers da coalizão latino-americana se envolveram no trabalho. Trocaram mensagens, apurações oficiais e impressões. Mas, por dificuldade de acesso a dados e em decorrência da ultrapolarização vivida na Venezuela, não foi possível concluir quem afinal rendia quem naquela cena. Assim sendo a dúvida permaneceu, e o vídeo foi usado com fartura, pelos dois lados da crise, como “prova irrefutável” de sua enorme força e sucesso. A checagem padeceu.
É bem possível que você tenha recebido essa gravação. Tente recordar. Ela mostra uma avenida ensolarada onde estão parados dois veículos brancos da Guarda Nacional Bolivariana.
A cena é filmada por uma mulher, com um celular, de um edifício em frente à avenida, mas um pouco distante. A mulher narra o momento exato em que um grupo de militares fardados e fortemente armados se aproxima, a pé, desses tanques e obriga os passageiros a descer dos veículos e se render.
A narradora comemora. É claramente partidária de Guaidó e, de longe, entende que os militares que lutam pela sustentação do governo de Nicolás Maduro são aqueles que estão dentro dos veículos e que os militares a favor de Juan Guaidó são aqueles que conseguem a rendição.
Mas como comprovar isso? Assista ao vídeo aqui.
Logo de cara, os fact-checkers descobrem que a cena havia se dado na avenida Francisco Fajardo, de Caracas, e que o ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino, tinha falado sobre ela numa coletiva de imprensa concedida poucas horas depois.
Para Padrino, um grupo “minúsculo” de militares e funcionários policiais havia roubado veículos e armas da Guarda Nacional Bolivariana para participar do movimento proposto por Guaidó. Eles tinham sido detectados e imobilizados pela inteligência venezuelana.
Nas redes, no entanto, dezenas de pessoas já compartilhavam a mesma gravação sugerindo exatamente o contrário. Junto com as hashtags de apoio a Guaidó, #OperaciónLibertad e #30Abr, postavam o seguinte: “Militares compatriotas pressionam seus companheiros para que desçam dos tanques na rodovia Francisco Fajardo (…) Vamos apoiá-los”.
Nos bastidores da iniciativa #VENfacts, os checadores analisavam detalhadamente os frames do vídeo em busca de diferença nos uniformes ou nas armas. Nada. Tudo igual. Buscavam também possíveis detalhes em áudio. Mas, da distância em que o celular está, não foi possível captar o que os militares disseram entre si. Na gravação também não havia rostos. E a dificuldade se instalou. Quem rendeu quem? Em quem acreditar?
Houve então o debate político: “Teria o ministro da Defesa mencionado o caso numa coletiva postada no Twitter se sua tropa tivesse sido rendida em plena luz do dia?”. E mais: “Será que a mulher que gravou esse vídeo ouviu alguma conversa entre os militares ou será que ela viu na avenida aquilo que tanto desejava?”
Pipocou então na Argentina uma postagem do portal Infobae, de grande audiência, com um título razoavelmente questionável do ponto de vista da checagem. “Assim se rendem os militares chavistas”, dizia o post, com o vídeo embedado – e nenhuma outra explicação adjacente.
Os checadores lamentaram. E as redes sociais também. Foram diversos os comentários que procuravam entender: “Mas afinal, o que exatamente estou vendo nessa imagem? Quem está rendendo quem?”.
A dúvida permanece até agora.
Este artigo foi publicado na edição digital da revista Época no dia 6 de maio de 2019.
Editado por
Clique aqui para ver como a Lupa faz suas checagens e acessar a política de transparência
A Lupa faz parte do
The trust project
International Fact-Checking Network
A Agência Lupa é membro verificado da International Fact-checking Network (IFCN). Cumpre os cinco princípios éticos estabelecidos pela rede de checadores e passa por auditorias independentes todos os anos.
A Lupa está infringindo esse código? FALE COM A IFCN
Tipo de Conteúdo: Opinião
Conteúdo editorial em que a Lupa ou convidados se posicionam sobre algum fato envolvendo desinformação e educação midiática.
Copyright Lupa. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.

Leia também


11.07.2024 - 18h17
opinião
Alvo de 'Abin paralela', Lupa pede resposta de autoridades sobre espionagem ilegal

A Lupa repudia o uso clandestino de ferramentas operadas pelo Estado brasileiro contra a imprensa e, especificamente, contra a própria Lupa. Ações como essa representam riscos a uma democracia livre e precisam de respostas contundentes das autoridades.

Natália Leal
09.05.2024 - 16h03
Rio Grande do Sul
Como é estar em Porto Alegre e combater fakes em meio ao caos da enchente

Repórter da Lupa relata como é trabalhar com checagem de fatos vivendo em Porto Alegre, cidade que convive com bairros alagados, falta de água potável e com uma enxurrada de desinformação que contribui para o caos.

Maiquel Rosauro
01.11.2023 - 08h00
Coluna
Um ano após Musk, X enfrenta declínio em meio à escalada de fakes e ódio

Em seu primeiro ano à frente do X (antigo Twitter), Elon Musk coleciona fracassos. Há queda em downloads, tempo de uso e valor de mercado. Enquanto isso, cresce a circulação de discurso de ódio, incluindo mensagens racistas, antissemitas e homofóbicas, e da circulação de desinformação e teorias conspiratórias, analisa a colunista Cristina Tardáguila.

Cristina Tardáguila
25.10.2023 - 08h00
Coluna
Israel descreve foto violenta e complica (ainda mais) checagem da guerra

As Forças Armadas Israelenses colocaram os checadores que acompanham a guerra no Oriente Médio em xeque ao postar no X um conteúdo em texto que, aparentemente, não pode ser verificado. O post relata o suposto assassinado de uma mulher grávida e um bebê pelo Hamas. A colunista Cristina Tardáguila conta como foi a busca por evidências sobre o caso.

Cristina Tardáguila
18.10.2023 - 10h00
Coluna
Imagens de horror em Gaza e Israel: como podemos nos proteger?

A violência da guerra entre Israel e Hamas circula em imagens impactantes, especialmente nas redes sociais. A colunista Cristina Tardáguila conversou com especialistas e explica o que podemos fazer para evitar que a exposição a cenas tão brutais afetem a nossa saúde mental.

Cristina Tardáguila
Lupa © 2024 Todos os direitos reservados
Feito por
Dex01
Meza Digital