UOL - O melhor conteúdo
Lupa
Motosserras à solta na Zona Sul do Rio e a frustrante proteção ambiental no Brasil
29.05.2019 - 06h00
Rio de Janeiro - RJ
Quinta-feira, 23 de maio, 9h. “Vvvvrrummm. Vvvvrrruummm”. Ouço da janela do meu quarto – que dá para uma parte ainda intacta da Mata Atlântica do Morro Dona Marta, situado entre os bairros de Botafogo, Flamengo, Laranjeiras e Cosme Velho, no Rio de Janeiro – o som nítido de uma potente motosserra. Vozes de homens se misturam à revoada de passarinhos apavorados. Nessa parte, a mata ainda é fechada e é comum ver tucanos e micos de diversos tamanhos. O verde é ostensivo.
Telefono para a administração do edifício. Do outro lado da linha, a informação é clara: “Não autorizamos corte algum”. Faz sentido. A mata densa, além de exuberante e necessária, contém o avanço da Santa Marta, comunidade que há décadas ocupa parte da mesma encosta e que, com o desmonte das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), tem registrado cada vez mais casos de tiroteios e violência.
“Vvvvrrummm. Vvvvrrruummm”, continua a motosserra. E vou para janela questionar: “Vocês têm autorização para cortar essas árvores? Quem são vocês?” E me dou conta de que posso estar em risco. Um homem armado, daquela distância (cerca de 50 metros), pode facilmente me calar. Ligo, então, para o 190 e dou início a uma saga que me tomaria os próximos 90 minutos e me renderia uma das checagens mais frustrantes da minha profissão. A certeza de que a proteção ambiental no Rio de Janeiro vai mal.
No telefone de emergência do 190, perguntam se fui ameaçada pelo homem da motosserra. Digo que ouvi um “cala a boca”. Diante disso, sou informada de que o crime é apenas ambiental e que deveria acionar o batalhão responsável da Polícia Militar. Recebo dois números de telefone especiais: XXXX-7273 e XXXX-0006. Nenhum deles, no entanto, atende. São 9h30, 9h45, 10h. Nada.
A motosserra continua ativa. E acompanho o momento exato em que uma árvore centenária, dessas de tronco pesado e muitos ramos, cai sobre outras, provocando o rompimento de galhos sucessivos. Era Zona Sul do Rio de Janeiro. Botafogo. Mas parecia documentário. Resolvi gritar contra aquilo. “Estou gravando vocês!”.
Com o telefone no viva-voz consegui que atendessem num dos números informados pelo 190. O policial do outro lado da linha foi, no entanto, ríspido: “Minha senhora, essa área aí é de UPP. A senhora tem que telefonar para lá”. E desligou sem mais. Fiquei com vontade de chorar. Minha filha, que tem 10 anos e acompanhava a cena, me perguntou o porquê daquilo tudo. “Por que ele não quis cuidar da árvore, mãe?” Respondi que explicaria depois.
No Google, achei o telefone do Ibama. Percebi então que não temos na ponta da língua números para emergências ambientais. Sempre foi assim? Isso está certo? É normal?
No telefone da sede fluminense do órgão, deram-me duas opções: enviar um email para linhaverde.sede@ibama.gov.br, relatando o fato e dando um ponto de referência do ocorrido (melhor se coordenadas geográficas) e/ou retornar a ligação para o batalhão da PM Ambiental, num número diferente do que o 190 havia informado: XXXX-7634.
Liguei no número informado pelo Ibama, buscando agilidade, mas aquele também não era o correto. O final deveria ser 32 e não 34, explicou-me o policial da vez. A essa altura, meu sangue já fervia. E, a cada “vvrrummm” da motosserra, eu me sentia mais e mais impotente. Foi então que atenderam na PM Ambiental. Número correto! E, com uma simpatia ímpar, o policial me acolheu, lamentando comigo toda a novela:
“Temos um batalhão só para o Estado do Rio de Janeiro todo. É comum ficarmos frustrados. Se ao menos o 190 pudesse ajudar… É crime ambiental, mas é crime, não é?” E, em seguida, me explicou que pediria ajuda do 190 mesmo assim. Depois, sugeriu que eu também denunciasse o caso por meio do Disque Denúncia (2253-1177). Assim, disse ele, “conseguimos ativar outras instâncias de poder também”. Baixei o aplicativo e fiz a denúncia – já que o telefone ficava na musiquinha por mais de 10 minutos… O código da denúncia é “jiqwixw”. Mas ela seguiu sem fotos nem vídeos. O aplicativo, que é capaz de aceitar esses arquivos, travou no upload.
Agora são 9h da segunda-feira 27 de maio. Quatro dias se passaram. Ouvi as motosserras novamente na manhã seguinte à saga, na última sexta-feira. No sábado e domingo, elas descansaram.
Até agora, segundo informam os administradores do meu edifício, nenhuma força policial ou de fiscalização meio ambiental apareceu por aqui para colher informações ou pedir acesso ao local. Espero que tenham feito isso por outras vias. E, sobretudo, que os cortes tenham sido realmente legais e autorizados por alguma instituição responsável – com algum propósito justificado.
As escadas de metal que eu conseguia entrever da minha janela se foram. Algumas árvores da Mata Atlântica também. O que ficou mesmo foi só a frustração de não ter conseguido salvar esse pedacinho de verde que me dá bom dia todos os dias.
Serviço:
Emergência PM – 190
Batalhão de Polícia Ambiental PM – 2334-7632
Disque Denúncia – 2253-1177
Esta coluna foi publicada no site da revista Época em 27 de maio de 2019.
Editado por
Clique aqui para ver como a Lupa faz suas checagens e acessar a política de transparência
A Lupa faz parte do
The trust project
International Fact-Checking Network
A Agência Lupa é membro verificado da International Fact-checking Network (IFCN). Cumpre os cinco princípios éticos estabelecidos pela rede de checadores e passa por auditorias independentes todos os anos.
A Lupa está infringindo esse código? FALE COM A IFCN
Tipo de Conteúdo: Opinião
Conteúdo editorial em que a Lupa ou convidados se posicionam sobre algum fato envolvendo desinformação e educação midiática.
Copyright Lupa. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.

Leia também


11.07.2024 - 18h17
opinião
Alvo de 'Abin paralela', Lupa pede resposta de autoridades sobre espionagem ilegal

A Lupa repudia o uso clandestino de ferramentas operadas pelo Estado brasileiro contra a imprensa e, especificamente, contra a própria Lupa. Ações como essa representam riscos a uma democracia livre e precisam de respostas contundentes das autoridades.

Natália Leal
09.05.2024 - 16h03
Rio Grande do Sul
Como é estar em Porto Alegre e combater fakes em meio ao caos da enchente

Repórter da Lupa relata como é trabalhar com checagem de fatos vivendo em Porto Alegre, cidade que convive com bairros alagados, falta de água potável e com uma enxurrada de desinformação que contribui para o caos.

Maiquel Rosauro
01.11.2023 - 08h00
Coluna
Um ano após Musk, X enfrenta declínio em meio à escalada de fakes e ódio

Em seu primeiro ano à frente do X (antigo Twitter), Elon Musk coleciona fracassos. Há queda em downloads, tempo de uso e valor de mercado. Enquanto isso, cresce a circulação de discurso de ódio, incluindo mensagens racistas, antissemitas e homofóbicas, e da circulação de desinformação e teorias conspiratórias, analisa a colunista Cristina Tardáguila.

Cristina Tardáguila
25.10.2023 - 08h00
Coluna
Israel descreve foto violenta e complica (ainda mais) checagem da guerra

As Forças Armadas Israelenses colocaram os checadores que acompanham a guerra no Oriente Médio em xeque ao postar no X um conteúdo em texto que, aparentemente, não pode ser verificado. O post relata o suposto assassinado de uma mulher grávida e um bebê pelo Hamas. A colunista Cristina Tardáguila conta como foi a busca por evidências sobre o caso.

Cristina Tardáguila
18.10.2023 - 10h00
Coluna
Imagens de horror em Gaza e Israel: como podemos nos proteger?

A violência da guerra entre Israel e Hamas circula em imagens impactantes, especialmente nas redes sociais. A colunista Cristina Tardáguila conversou com especialistas e explica o que podemos fazer para evitar que a exposição a cenas tão brutais afetem a nossa saúde mental.

Cristina Tardáguila
Lupa © 2024 Todos os direitos reservados
Feito por
Dex01
Meza Digital