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Covid-19: entenda por que nenhum país tem vacina contra o coronavírus
26.03.2020 - 16h36
Rio de Janeiro - RJ
Os efeitos devastadores da pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) provocaram uma corrida global em busca de uma vacina contra a Covid-19. Já há pesquisas em ritmo acelerado para descobrir uma maneira de imunizar as pessoas contra o vírus, mas esse objetivo ainda não foi atingido. Nenhum país produziu uma vacina até o momento, e as previsões mais otimistas indicam que isso só deve ocorrer em 2021.
Estados Unidos e China saíram na frente ao anunciar o início dos testes em humanos, nos dias 16 e 17 de março, respectivamente. Muita gente interpretou isso como sinal de que os dois países já tinham encontrado uma solução para enfrentar a doença. Mas isso não é verdadeiro.
As vacinas são produtos que protegem as pessoas de serem contaminadas por uma determinada  doença. Geralmente contêm o vírus ou a bactéria causadores da enfermidade em forma atenuada ou inativa – ou seja, inofensivos para a saúde. Tecnologias mais atuais também permitem incluir apenas partes desses micro-organismos, como proteínas, e outros tipos de moléculas. Depois de a dose ser injetada, os antígenos levam o corpo a produzir anticorpos para enfrentar esses invasores. Assim, quando a pessoa imunizada realmente for infectada pelo vírus ou bactéria, dificilmente terá a doença ou vai desenvolvê-la numa forma muito mais branda.
O fato de laboratórios na China e nos Estados Unidos terem começado testes com seres humanos não significa que as vacinas contra a Covid-19 estão praticamente prontas, ou que seu desenvolvimento esteja próximo do fim. Na verdade, trata-se de protótipos. Sua eficiência só será comprovada depois dos testes clínicos, divididos em três fases.
Essa é a etapa mais demorada e importante na descoberta de uma imunização. Por meio destes testes serão verificadas a segurança de se aplicar o produto, que pode causar reações adversas, e a sua capacidade de proteger contra o vírus. Apressar essa fase colocaria em risco a população. “A vacina seria a melhor ferramenta [contra o novo coronavírus], porque é uma ferramenta de prevenção, mas é a mais difícil de ser atingida”, afirma Marco Aurélio Krieger, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Tradicionalmente, a criação de uma vacina pode levar mais de uma década. As iniciativas contra o SARS-CoV-2 estão em um ritmo bem mais acelerado porque apostam em novas tecnologias de desenvolvimento, capazes de abreviar o tempo exigido em algumas etapas do processo. A emergência causada pela pandemia também tem levado agências reguladoras a aceitarem períodos mais curtos para os testes exigidos. Mesmo assim, a previsão dos especialistas é de que uma imunização contra o novo coronavírus levará pelo menos de 12 a 18 meses, o que seria considerado um recorde. Esse prazo só será cumprido se algum dos protótipos de vacinas for realmente eficaz contra o vírus. Senão, o trabalho levará mais tempo. Existem hoje mais de 30 iniciativas que tentam encontrar uma forma de prevenção contra a Covid-19.

Testes em humanos

Os testes clínicos dos protótipos das vacinas – ou seja, seu uso experimental em seres humanos – dividem-se em três fases. A fase 1, iniciada por laboratórios dos Estados Unidos e da China, consiste na aplicação do produto em uma pequena quantidade de pessoas. Nos EUA, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) e a empresa de biotecnologia Moderna esperam contar com 45 voluntários de 18 a 55 anos, que receberão duas injeções em um intervalo de 28 dias – a primeira paciente, Jennifer Haller, recebeu a dose inicial em 16 de março. A companhia prometeu entregar uma versão emergencial da vacina, voltada apenas para profissionais de saúde no final de 2020. Mas isso depende dos resultados das análises e também de uma autorização especial de agências reguladoras. Na China, serão testados 108 indivíduos. A empresa CanSinoBIO, que desenvolve o produto com o Instituto de Biotecnologia de Pequim, e a Academia Militar de Ciências Médicas vão conduzir os testes.
Depois da aplicação, os pacientes serão examinados cuidadosamente para verificar se tiveram alguma reação, como uma alergia ou um problema ainda mais sério, e se houve alguma resposta imune do organismo. No caso das iniciativas contra o SARS-CoV-2, isso pode demorar cerca de seis meses. Se tudo correr bem, algumas centenas de pessoas são selecionadas para a fase 2, que vai analisar se o protótipo realmente consegue criar imunidade contra o novo coronavírus.
Nessa etapa, os pesquisadores verificam a resposta de indivíduos com características diferentes entre si. Isso mostrará se o produto se comporta da mesma forma para todos eles. “Além da segurança, é avaliada também a eficácia, a capacidade que essa vacina tem de produzir, por exemplo, anticorpos neutralizantes”, explica Krieger, da Fiocruz. Como a quantidade de voluntários é maior, o tempo necessário para analisar os resultados também aumenta e pode superar seis meses.
A última etapa, a fase 3, é a mais complexa e consiste em realizar testes em grande escala, com milhares de pessoas, para confirmar a eficiência e a segurança identificadas anteriormente. Mais uma vez, todo o processo pode se estender bastante, podendo demorar até um ano ou mais. “Muitas vezes, os efeitos adversos de uma vacina não acontecem em todas as pessoas da mesma maneira”, explica Krieger. Ao aplicar as doses em milhares de voluntários, fica mais fácil de identificar o aumento da ocorrência de algum efeito adverso. Ou seja, tudo precisa dar certo ao longo dessas três fases para que o protótipo seja considerado como uma vacina.
Depois disso, se dá início a produção. Ainda levaria alguns meses para fabricar milhões de doses. Mesmo pronta, a vacina continua a ser monitorada numa fase 4, de farmacovigilância. “Continuamos a acompanhar o desempenho, avaliando reações adversas e a eficiência mesmo com o produto no mercado”, diz Krieger.

Perigos envolvidos

Alergias são apenas um dos problemas que podem ocorrer como reação a um protótipo de vacina. Outros riscos, como o de desenvolver uma resposta autoimune (quando o sistema imunológico ataca células do nosso próprio corpo), também precisam ser avaliados. Mas um dos principais temores dos cientistas em relação ao SARS-CoV-2 está na possibilidade de a vacina provocar uma Covid-19 mais aguda para quem tomá-la e for infectado depois.
O receio tem origem em estudos feitos com outros tipos de coronavírus. “Grupos de pesquisa imunizaram com uma parte do vírus. Aquilo não protegeu direito e, quando o animal [utilizado como cobaia nos testes pré-clínicos] foi infectado com o vírus ativo, teve uma doença piorada em relação àqueles que não foram vacinados. Isso é um fenômeno que acontece muito quando você não tem uma resposta imune neutralizante do vírus”, afirma Renato Astray, pesquisador científico do Laboratório Multipropósito do Instituto Butantan.
O fenômeno é conhecido como reforço da doença por anticorpos (antibody disease enhancement, em inglês). Uma situação comum em que isso ocorre é quando alguém pega mais de um tipo de dengue diferente ao longo da vida. Se na primeira delas, por exemplo, a pessoa contrai o tipo 2, desenvolve anticorpos contra esse sorotipo do vírus e fica curada. Mas, na segunda vez, ao pegar qualquer outro dos tipos existentes (1 ou 4), os anticorpos desenvolvidos contra o tipo 2 reconhecem o vírus da dengue, se ligam a ele, mas não são eficazes em neutralizá-lo – com isso, seu poder de infecção acaba aumentando. “A mesma coisa aconteceu com [outros] coronavírus. Por isso não é uma vacina tão simples de desenvolver”, destaca Astray. Para obter aprovação das agências reguladoras, as equipes de pesquisa precisam demonstrar que o problema não ocorrerá quando alguém contrair o SARS-CoV-2 depois de ser imunizado.
Essa dificuldade explica por que o processo clássico de produção de vacinas, com inativação e injeção do vírus, provavelmente não funcionaria contra a Covid-19. A aposta dos pesquisadores para contornar esse problema está na adoção de outros tipos de tecnologia. O protótipo desenvolvido pela Moderna, por exemplo, usa RNA mensageiro (mRNA), uma molécula que orienta a síntese de proteínas no interior das células – nesse caso, para produzir proteínas contra as quais o corpo criará uma resposta imune. Trata-se de uma plataforma de criação de vacinas, ou seja, uma solução que já foi testada e aprovada na fase pré-clínica, de pesquisa, com outros vírus. Basta substituir um mRNA por outro para obter a imunização de uma doença diferente.
Já o protótipo da CanSinoBIO adota uma outra plataforma, baseada no adenovírus humano tipo 5 (causador principalmente de infecções respiratórias e pneumonia), para criar uma resposta imunológica contra a Covid-19. A facilidade de adaptar uma solução para outra permitiu que Moderna e CanSinoBIO entrassem na fase 1 de testes clínicos menos de três meses após o surgimento da Covid-19. Também há vacinas baseadas em plataformas de DNA e peptídeos sintéticos, entre outras. De acordo com Astray, do Butantan, embora essas tecnologias sejam promissoras, até hoje apenas uma delas conseguiu dar origem a um produto disponível no mercado. Trata-se de uma vacina contra a gripe, a Flublok, criada com tecnologia recombinante, que sintetiza o antígeno em laboratório.

Estudos em andamento

Outro obstáculo está na falta de conhecimento sobre como ocorre a imunização contra o novo coronavírus nas pessoas que pegaram Covid-19 e se curaram. “A gente sabe que tem uma resposta de anticorpos. E a gente sabe que tem uma resposta imune do tipo celular envolvida. Agora, quais as características necessárias para que essas duas respostas estejam suficientes para imunizar a pessoa, ainda não se sabe. Isso está sendo estudado”, afirma Astray, do Butantan. O desenvolvimento de protótipos vacinais está ocorrendo ao mesmo tempo em que se busca entender melhor como funciona o processo de imunização do corpo humano para o SARS-CoV-2. Essa corrida de pesquisas paralelas também ocorreu recentemente no caso do zika vírus.
Os testes clínicos para o desenvolvimento de vacinas são procedimentos muito caros e demorados. Por isso, a descoberta da imunização contra a Covid-19 terá relação direta com a duração da pandemia. Se a disseminação da doença não se estender muito, há o risco de a maioria das iniciativas ser interrompida. Foi o que ocorreu com os esforços para se criar uma vacina contra a SARS, a síndrome respiratória aguda grave, também causada por um tipo de coronavírus. Os estudos foram encerrados no final da fase 1 porque a doença já tinha sido erradicada.
Enquanto a vacina não chega, é possível – e desejável – que o tratamento da doença com medicamentos já existentes ajude a amenizar, ou em um cenário ideal, frear a epidemia. Vários medicamentos já existentes, incluindo a hidroxicloroquina e o tocilizumabe, vêm sendo testados no tratamento da doença, mas ainda é cedo para saber sua eficácia.
A descoberta de uma vacina contra o SARS-CoV-2 pode ser a chance das novas plataformas de desenvolvimento desses antídotos mostrarem sua eficiência contra uma ameaça que acaba de surgir. Se provarem que são capazes de dar uma resposta, poderão servir como uma solução para outras epidemias futuras. Ainda assim, as exigências de segurança, os custos e os riscos envolvidos mostram que o processo não é simples. Por mais veloz que qualquer laboratório consiga ser, uma vacina contra a Covid-19 ainda vai demorar para chegar ao mercado.

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Gabriela Soares
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