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Lupa na Ciência: Entenda a importância do estudo brasileiro que comprovou ineficácia da hidroxicloroquina para casos leves e moderados de Covid-19
27.07.2020 - 12h00
Rio de Janeiro - RJ
O que você precisa saber:
  • Pesquisa brasileira com alto rigor metodológico e publicada numa das maiores revistas científicas do mundo mostrou que a hidroxicloroquina não traz benefícios para pacientes com casos leves e moderados de Covid-19
  • A divulgação veio dias depois de um estudo americano, que adotou uma metodologia mais frágil para medir a eficácia do medicamento, apontar que o uso da hidroxicloroquina reduzia pela metade as mortes de pacientes internados
  • A soma de estudos realizados até agora sobre o assunto levou diversos países e entidades, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a suspender os testes com o medicamento e a recomendação do seu uso para pacientes infectados com o novo coronavírus
  • No Brasil, o Ministério da Saúde seguiu o caminho oposto, e em meados de julho reforçou a recomendação do uso da hidroxicloroquina a hospitais federais
O mais importante estudo já feito no Brasil sobre o uso da hidroxicloroquina no combate ao novo coronavírus foi publicado na última quinta-feira (23), no periódico New England Journal of Medicine. Os pesquisadores  comprovaram que a droga é ineficaz no tratamento de casos leves e moderados da Covid-19. O estudo trouxe resultados semelhantes aos de pesquisas anteriores, mas ganhou relevância pelo rigor de sua metodologia. Foi um ensaio clínico multicêntrico, randomizado e controlado realizado com centenas de pacientes. Trata-se de uma série de práticas que permitem eliminar possíveis vieses e incertezas durante o processo, permitindo resultados mais puros e confiáveis.
A pesquisa brasileira aparece em um momento importante. Ela foi publicada semanas depois de outro estudo, este observacional, apresentar resultados favoráveis ao uso do medicamento. Desenvolvido por pesquisadores do Sistema de Saúde Henry Ford, em Detroit, Michigan, o trabalho, publicado no periódico International Journal of Infectious Diseases, avaliou cerca de 2.500 pacientes e concluiu que os que receberam hidroxicloroquina tiveram uma taxa de mortalidade reduzida pela metade. Apesar de ter sido amplamente divulgada pelos defensores do uso do medicamento, a pesquisa sofreu críticas pela fragilidade dos resultados. A metodologia utilizada é limitada, e não permite que o pesquisador analise de forma detalhada fatores externos que podem interferir nos resultados.
Quando analisados pelo espectro da medicina baseada em evidências (MBE), os Ensaios Clínicos Randomizados (ECR), como o brasileiro, estão na ponta da pirâmide, correspondendo a uma das melhores qualidades metodológicas possíveis para a resposta a uma questão clínica, ainda que possa ter limitações. No ECR, os pacientes são divididos de forma aleatória em grupos. Eles então recebem o medicamento ou um placebo, e o desfecho dos tratamentos é acompanhado. Dessa forma, é possível confirmar que, se houver diferença entre os grupos, é porque a medicação funcionou. E se não houver, como foi o caso do estudo brasileiro, há fortes indícios de que a medicação não trouxe benefícios. Já nos estudos observacionais, o pesquisador não tem elementos para diferenciar e eliminar outros fatores que possam interferir nos resultados. Logo, não há como ter certeza, como no exemplo desse estudo americano, se foi a cloroquina isoladamente que provocou a melhora naquele grupo de pacientes. De forma resumida, os estudos observacionais geram hipóteses, que podem ou não ser confirmadas pelos estudos clínicos.

Os resultados da pesquisa brasileira

A publicação brasileira partiu da Coalizão Covid-19, que une nove centros de pesquisa realizando estudos com diferentes tratamentos para combater o novo coronavírus. Nesta primeira publicação, 667 pessoas em 55 hospitais diferentes com suspeita de Covid-19 foram recrutadas. Dessas, 504 tiveram a doença confirmada e apresentavam quadros leves ou moderados. Todos foram divididos de maneira randomizada (aleatória e por sorteio) em três grupos. Essa etapa da pesquisa teve início no dia 29 de março, sendo que o último paciente foi incluído em 17 de maio. O acompanhamento deles foi finalizado no dia 2 de junho. Os voluntários tinham idade média de 50 anos e haviam apresentado sintomas da doença até 10 dias antes do início do estudo. Parte deles tinha outras comorbidades, como hipertensão e diabetes.
Um grupo recebeu hidroxicloroquina associada ao antibiótico azitromicina (217 pessoas, Grupo 1); outro recebeu apenas hidroxicloroquina (221 pessoas, Grupo 2); e outro, chamado grupo controle, não recebeu nenhuma das duas drogas  (229 pessoas, Grupo 3). Além disso, todos receberam, simultaneamente, o tratamento padrão, que inclui medicamentos para sintomas, oxigênio, entre outros. Como o foco do estudo era avaliar a ação da medicação em casos leves e moderados, foram incluídos somente participantes internados que não precisaram de oxigênio ou que utilizaram suporte suplementar leve de oxigenação.
Os três grupos receberam as medicações por 7 dias, e no 15º dia após o início do tratamento, seus quadros clínicos foram classificados conforme uma tabela com sete possíveis desfechos para estes casos. Após avaliar os voluntários, os pesquisadores concluíram que a hidroxicloroquina sozinha ou associada à azitromicina não trouxe melhoras no quadro clínico desses pacientes quando comparado ao grupo que recebeu placebo. O índice de óbitos ficou em torno de 3% nos três grupos.
Durante todo o processo, os pacientes foram testados para avaliar a segurança do tratamento, realizando com frequência eletrocardiograma, exames e consultas. Quanto aos eventos adversos, a pesquisa mostrou que os pacientes que tomaram hidroxicloroquina, com ou sem azitromicina, apresentaram com mais frequência alteração no eletrocardiograma associada a maior risco de arritmia cardíaca (14% contra 1,7% no grupo controle). Nos Grupos 1 e 2 também foram identificadas alterações nas enzimas hepáticas em maior porcentagem do que o grupo controle. Elas podem representar lesões no fígado.

A escalada de dúvidas

No início da pandemia, pesquisadores suspeitaram que a cloroquina e a hidroxicloroquina, dois medicamentos antimaláricos, poderiam impedir o novo coronavírus de se replicar nas células. Alguns pequenos estudos in vitro, observacionais ou clínicos não randomizados apontaram para essa hipótese otimista. No entanto, eram métodos frágeis para estabelecer a eficácia. Em uma revisão de estudos sobre o tema publicada em junho no Journal of Critical Care, os autores concluíram que era urgente a necessidade de pesquisas de alta qualidade e com resultados confiáveis para definir riscos e benefícios do medicamento. Os resultados de pesquisas com maior rigor metodológico começaram a apontar para o lado contrário. E mesmo nesses, como é o caso do estudo brasileiro, os próprios autores reconhecem que há algumas limitações.
Em situações assim, conforme explica a médica Leticia Kawano-Dourado, uma das coautoras do estudo brasileiro, artigos científicos não devem ser encarados isoladamente, mas sim no conjunto de trabalhos que têm sido publicados. É esse conjunto que ajudará a definir as diretrizes de tratamentos e o uso do medicamento em testes clínicos. No mundo, já foram publicados outros ensaios clínicos randomizados com a hidroxicloroquina e com a cloroquina, mas poucos em revistas renomadas com revisão dos pares, envolvendo centenas de pacientes em vários hospitais ao mesmo tempo. Os que cumpriram esse rigor metodológico apontaram que o medicamento não tem efeito nos casos leves, moderados e graves da doença. Além disso, alguns sugeriram efeitos colaterais significativos.
Isso levou entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) a suspender os ensaios clínicos com a hidroxicloroquina. Pesquisadores do Solidarity Trial, pesquisa coordenada pela instituição com potenciais tratamentos para a Covid-19, concluíram, a partir de testes randomizados e duplo-cegos, que o medicamento não é eficiente. A Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos, que inicialmente aprovou o uso emergencial do remédio contra o novo coronavírus, voltou atrás nessa decisão. Além disso, a instituição passou a alertar que a droga pode causar sérios efeitos colaterais ao coração e a outros órgãos quando usada no tratamento da Covid-19. Órgãos reguladores de outros países tomaram decisões semelhantes.
Na contramão da tendência mundial, o Brasil reforçou recentemente a recomendação do uso da hidroxicloroquina. Em meados de julho o Ministério da Saúde enviou um ofício a institutos e hospitais federais em que solicita a “ampla divulgação” do uso do medicamento para o “tratamento precoce” de pacientes com Covid-19. A orientação, que é contrária às posições de sociedades médicas nacionais, como a Sociedade Brasileira de Infectologia, e internacionais, vem sendo defendida pelo governo desde o início da pandemia.
Fontes:
New England Journal of Medicine. Artigo disponível em:
https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2019014
Journal of Infectious Diseases. Artigo disponível em:
https://www.ijidonline.com/article/S1201-9712(20)30534-8/fulltext
Journal of Critical Care. Artigo disponível em:
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32173110/
Organização Mundial da Saúde. Documento disponível em:
https://www.who.int/news-room/q-a-detail/q-a-hydroxychloroquine-and-covid-19
Nota: o projeto Lupa na Ciência é uma iniciativa da Agência Lupa contra a desinformação em torno do novo coronavírus e da Covid-19 e conta com o apoio do Google News Initiative. Para saber mais, clique aqui.
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Catiane Pereira
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