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Pré-Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares busca respostas para aumento na insegurança alimentar
30.07.2021 - 08h00
Rio de Janeiro - RJ
Foi somente depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que a fome passou a ser entendida como uma questão urgente que deveria ser combatida globalmente. A escassez durante e no pós-guerra em diferentes partes do mundo deixou um saldo de milhões de mortos por inanição até que, em 1948, o direito humano à alimentação adequada foi previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 25). Décadas depois, o problema da insegurança alimentar não só não está superado como atravessa diferentes áreas, incluindo a que envolve um dos temas mais urgentes do debate mundial: as mudanças climáticas, afinal, a produção de alimentos é a que mais impacta e é impactada no pelo aquecimento global.
Em 2020, um levantamento conjunto feito por várias agências da Organização das Nações Unidas mostrou que um décimo da população global — cerca de 811 milhões de pessoas  —  enfrentou a fome. E as previsões para os próximos 30 anos não são otimistas. A Pré-Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares foi realizada no começo desta semana para discutir saídas para esse problema. O evento antecede — e se contrapõe — o evento principal, organizado pela ONU.
Especialistas ouvidos pela Lupa afirmam que esses debates são e serão cruciais para a construção de sistemas alimentares sustentáveis que, por sua vez, representam uma saída digna em direção à soberania alimentar e para mitigar os prejuízos causados pelo agronegócio ao clima do planeta.  Para além do debate conceitual e político dos profissionais, empresas, organizações e lideranças envolvidas nessas atividades, tudo isso representa, na prática, que o cidadão comum tenha condições de acessar o que é um direito humano universal: alimentos frescos ou minimamente processados, com nutrientes mínimos para o funcionamento do organismo a um preço justo.

O que foi discutido na Pré-Cúpula e por que isso importa

A Pré-Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares foi realizada entre os dias 26 e 28 de julho em Roma, na Itália. O evento, considerado uma preparação para a conferência principal em setembro, reuniu lideranças políticas, pesquisadores, setor privado e representantes da sociedade civil de vários países, entre outros atores. O propósito foi promover debates, apresentar abordagens científicas e lançar compromissos sobre como os sistemas alimentares podem ser um caminho para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) relacionados à fome, desigualdade, agricultura, consumo e clima até 2030.
A cúpula foi anunciada em outubro de 2019 pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, e a iniciativa sofreu críticas duras, principalmente por parte da sociedade civil. “Essa cúpula foi construída junto ao Fórum Econômico Mundial, supostamente para fazer uma discussão sobre os sistemas alimentares no mundo, entender o seu conjunto e as várias atividades relacionadas. A crítica existe porque a agenda vem sendo capturada pelas grandes corporações”, contextualiza o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), Renato Maluf.
Os compromissos assumidos na pré-reunião serão conhecidos, de fato, somente durante a Cúpula, em setembro. De antemão, diálogos e documentos que já vêm sendo elaborados desde o ano passado apontam para o que foi chamado de Cinco Trilhas de Ação, que estabelecem metas de como garantir o acesso a alimentos seguros e nutritivos para todos e fomentar a mudança para padrões de consumo sustentáveis. “Esses documentos finais serão o conteúdo que vai compor os anúncios da cúpula. Os grupos voltarão e farão as versões finais, e dentro das discussões e dos pontos principais, será feita uma declaração final”, explica a professora da Universidade de Brasília Elisabetta Recine, integrante do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (OPSAN/UnB) e de vários coletivos sobre segurança alimentar.

Por que a Cúpula é criticada

Além de ter sido construído em conjunto com o Fórum Econômico Mundial, a iniciativa não levou em consideração o Mecanismo da Sociedade Civil, um órgão que faz parte do próprio Comitê de Segurança Alimentar da Organização. Esse órgão, inclusive, chegou a fazer uma carta à Guterrez pedindo que a Cúpula se desvinculasse de Davos. “Ele nunca respondeu. As críticas estão centradas no que foi chamado de captura corporativa dos sistema alimentares, que se expressa de quatro maneiras. A primeira é a captura da própria narrativa. Os documentos oficiais citam direitos humanos, das mulheres, defendem a agroecologia, a proteção dos pequenos agricultores. No entanto, citam isso apenas no título, porque as propostas de fato não levam a esses resultados, ao contrário”, observa Elisabetta Recine.
A professora também cita a captura de governança, a captura da ciência — por exemplo, quando o setor privado e suas grandes fundações financiam pesquisas cujos resultados são coerentes com as bandeiras das empresas — e, ainda, a captura do financiamento público, quando o estado deixa de financiar pesquisas e passa a ter seu espaço ocupado pelo setor privado.
“Nesse processo, tudo o que fica evidente é que de alguma maneira os países abriram mão da própria soberania. A cúpula está seguindo um caminho em que se coloca como definidora de estruturas e processos. A grande pergunta é: como os países estão deixando isso na mão de pessoas que não os representam de fato?”, questiona Recine.
Para Janine Giuberti Coutinho, Coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), instituição que se posicionou contrária à Cúpula, existe desinformação e falta de transparência dos processos formais da iniciativa. “Esses processos aparentam ser inclusivos, mas tiveram muitas limitações”, afirma.
Na prática, para cidadãos comuns, isso significa interferência das grandes corporações nas decisões políticas de alimentação e nutrição. “Um exemplo brasileiro disso é a isenção de imposto para agrotóxicos. O estado deixa de arrecadar dinheiro em função da isenção para agrotóxicos, sendo que é sim possível produzir alimento sem veneno”, opina Coutinho.
O exemplo do agrotóxico é emblemático: em junho, o Idec lançou uma pesquisa que identificou a presença de agrotóxicos em produtos ultraprocessados. O estudo, transformado em uma cartilha intitulada “Tem Veneno Nesse Pacote”, apontou que mais da metade dos produtos analisados apresentaram resíduos de glifosato ou glufosinato. “Quisemos olhar como esses venenos permaneciam após o ultraprocessamento, até porque muitos deles, como bolacha recheada e pão bisnaguinha, por exemplo, são oferecidos para criança, às vezes todos os dias. É um coquetel de agrotóxico. Tem produto que chega a ter oito tipos. Então essas decisões e proposições da Cúpula, quando se fala em conflito de interesse e conflito da grande indústria, são feitas para que agrotóxicos, por exemplo continuem tendo isenção”, afirma Janine Giuberti Coutinho.
A participação brasileira também recebeu críticas. Em maio, o governo federal organizou os Diálogos Nacionais, liderados pelo Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE). “Os documentos do governo brasileiro são até esquizofrênicos. De um lado, tem toda uma declaração valorizando programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) ou o próprio Guia Alimentar, que são justamente políticas públicas que vêm sendo destruídas nos últimos anos. Eles listam nos documentos elogiando coisas que já não estão mais fazendo e, por outro lado, reafirmam a defesa do agronegócio. Uma coisa desdiz a outra. Não é possível falar do Guia Alimentar e defender a ampliação de produção de carne, por exemplo”, critica a professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP Tereza Campello, coordenadora da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis.

Anti-cúpula expande diálogo

Em paralelo à pré-cúpula de Roma, uma “anti-cúpula”, chamada Contra-Mobilização dos Povos para Transformar os Sistemas Alimentares Corporativos, realizou na mesma data um encontro autônomo organizado pela sociedade civil com duras críticas à agenda oficial da ONU e propostas alternativas. “Do ponto de vista da sociedade civil, muito dos resultados da nossa contra-mobilização são voltados a continuar a insistir no diálogo com alguns países e, quem sabe, alguns manifestem algumas das nossas preocupações e bandeiras”, conclui Elisabetta Recine.
Entre essas bandeiras estão a crítica a uma agenda determinada pelo agronegócio e por grandes corporações, a agroecologia e a soberania alimentar das nações.
Nota: Essa reportagem foi produzida em parceria com a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da USP
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Maiquel Rosauro
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