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Editorial: O PL 2.630 não está pronto e não deve ser votado
06.04.2022 - 12h00
Rio de Janeiro - RJ
A Câmara dos Deputados erra, uma vez mais, ao se preparar para votar a urgência para o Projeto de Lei 2.360/2020, incorretamente apelidado de “PL das Fake News”. A proposta, relatada pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), tem vícios graves, que não foram sanados ao longo dos mais de dois anos de discussão sobre o tema. O PL 2.630 não deve ser votado como está, sob risco de contribuir para que a desinformação se espalhe com ainda mais força no ambiente digital.
É inadmissível a presença de um artigo como o 22, afirmando que a “imunidade parlamentar material estende-se às plataformas mantidas pelos provedores de aplicação de redes sociais”. O mesmo pode-se dizer do artigo 38, que, ao prever que plataformas de redes sociais, buscadores e aplicativos de mensagem remunerem veículos jornalísticos pelo uso de seus conteúdos, ameaça a diversidade jornalística do país e ignora que as redes profissionais de desinformadores cada vez mais se apropriam do discurso do jornalismo profissional para obter legitimidade, fingindo ser algo que não são.
A imunidade parlamentar no ambiente das redes sociais, prevista no artigo 22, abre uma brecha para que políticos no exercício do mandato estejam à margem de qualquer moderação de conteúdo nas plataformas, como se essa prática fosse uma forma de punir o parlamentar por expressar suas opiniões em publicações. A moderação, no entanto, não é, necessariamente, uma forma de punição, muito menos criminal. Ela é, sim, uma maneira de garantir que conteúdos potencialmente nocivos, entre eles desinformação, não causem danos a outros usuários, independentemente de terem sido publicados por agentes públicos ou não.
Quem prestou atenção aos perfis de políticos nas redes sociais durante a pandemia de Covid-19 sabe que muitos deles veicularam — e, ainda hoje, oxigenam — informações falsas. Muitas delas incentivam comportamentos que levaram pessoas à morte e contribuíram para que brasileiros se colocassem frontalmente contra políticas públicas de saúde que poderiam ter protegido uma parcela enorme da população, como a vacinação. A consequência disso são os mais de 660 mil mortos pelo coronavírus que o país registra.
Igualmente grave é a falta de isonomia que uma medida como essa poderia trazer às eleições, pois não é possível dizer que há justa competição entre políticos com carta branca para mentir contra outros candidatos que não gozam do mesmo privilégio. Isso sem mencionar o abismo que se cria entre a classe política e os usuários comuns.
Não menos inadequado é o artigo 38, que pode inviabilizar a atuação de iniciativas jornalísticas de menor porte e independentes de grandes conglomerados, agravando, ainda mais, a concentração da mídia nas mãos de poucos, uma realidade no Brasil. Os quatro parágrafos deste artigo, incluindo o caput, são vagos e jogam todo o mecanismo de pagamento “para a regulamentação”, a cargo do Executivo, o que não garante condições mínimas para que o jornalismo, de fato, saia fortalecido desse embate.
Não cabe aqui, como já foi feito por organizações jornalísticas, invocar o fato de que outros países, como Austrália, Canadá e França, caminham no mesmo sentido. Na Austrália, uma lei com o mesmo teor (e um detalhamento muito maior do que o texto do artigo 38) foi aprovada em 2021. Na prática, ela apenas contribuiu para aumentar a concentração da propriedade dos meios de comunicação no país — em particular nas mãos do grupo News Corp, de Rupert Murdoch, proprietário de veículos conhecidos por seu pouco apreço às boas práticas da profissão, como o jornal Daily Mail e a rede de televisão Fox News. Mais do que isso: acordos sem a mínima transparência colocaram vultosas somas de dinheiro em determinados grupos de mídia, enquanto outros pouco ou nada receberam, criando um desequilíbrio artificial entre empresas concorrentes.
A proposta tem pontos positivos, principalmente no que diz respeito à publicidade no ambiente digital e na garantia dos direitos dos usuários na internet. Mas, infelizmente, os apelos de especialistas e de organizações para que se definissem medidas efetivas de combate à desinformação parecem ter sido ignorados pela classe política, que se preocupa mais em garantir benefícios para si e atender a determinados interesses. As falhas do PL 2.630, apontadas há anos por todos que tentaram, de uma forma ou de outra, se envolver nesse debate, poderiam ser sanadas. Mas não houve interesse.
Mais de uma vez, a Lupa chamou atenção para o fato de que a educação midiática, por exemplo, passou ao largo da proposta, com poucas linhas dedicadas e sem a indicação de medidas efetivas a serem adotadas pelo Estado para difundir aquela que é a prática mais efetiva contra a desinformação, mas que só traz respostas a longo prazo. Outras organizações, como a Coalizão Direitos na Rede (CDR) e a Associação de Jornalismo Digital (Ajor), também se manifestaram alertando sobre o quanto a inclusão de artigos como o 38 são muito mais prejudiciais do que efetivos no fortalecimento de um ambiente digital mais transparente e plural.
O PL 2.630 institui a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. Mas parece que a Câmara não entendeu ainda que não há ambiente digital plural sem a liberdade para que as iniciativas jornalísticas, sejam elas do tamanho que forem, cumpram seu papel social. Também não é possível falar em uma internet mais segura sem a responsabilidade de cada um dos usuários — sejam políticos com mandato ou não — com as informações que compartilham. E que não se constrói uma lei justa sem a transparência de todos sobre o que nos move, de fato, a aprová-la.
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