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Desinformação e discurso de ódio dominam debate sobre transexuais em grupos no Facebook
02.06.2023 - 09h00
São Paulo - SP
Posts transfóbicos e narrativas falsas dominaram o debate sobre pessoas trans em grupos públicos do Facebook nos últimos quatro anos. É o que aponta um levantamento inédito realizado pelo Programa de Diversidade e Inclusão da FGV Direito Rio e o Democracy Reporting International, dentro do projeto Mídia e Democracia. A iniciativa conta com a parceria da Lupa
Foram analisadas 4,1 mil publicações feitas entre 1º de janeiro de 2019 e 30 de abril de 2023. A maioria das mensagens foi compartilhada em grupos alinhados à extrema-direita, principalmente ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Dos 10 grupos com maior número de publicações sobre o tema, 9 apresentavam esse perfil ideológico.
A pesquisa apontou que a tentativa de criminalização da população trans, por meio de constantes associações à pedofilia e à subversão de crianças, por exemplo, estão entre as estratégias utilizadas por grupos de extrema-direita para mobilizar sua base e gerar pânico moral.
“A gente nota que esse discurso predominante e unificado da extrema-direita dificulta até mesmo uma contra-narrativa de perfis relevantes dentro da comunidade LGBTQIA+, porque eles não conseguem ter essa mesma visibilidade no Facebook”, destaca Victor Giusti, pesquisador da FGV Direito Rio que participou da elaboração do relatório.
Em muitos casos, mensagens idênticas foram publicadas em diferentes grupos de extrema-direita, o que, segundo o estudo, sugere um movimento coordenado para disseminar desinformação em massa e discurso de ódio. 
É o caso de uma publicação que envolve o nome da apresentadora Fátima Bernardes. Em 2020, uma reportagem do Fantástico, da TV Globo, em que Dráuzio Varella mostrava a situação de mulheres trans em presídios masculinos, gerou grande repercussão nas redes sociais. Uma das entrevistadas, chamada Suzy, recebeu um abraço do médico durante a reportagem após revelar que não recebia visitas havia sete anos. Dias depois, o site O Antagonista revelou que ela foi condenada por homicídio e estupro de vulnerável.
Conforme mostra o levantamento, a revelação impulsionou um pico de discussões no Facebook — a maioria delas com teor negativo e desinformativo. No grupo Aliança pelo Brasil, que conta com 236 mil participantes, postagens afirmavam que Fȧtima Bernardes reformaria a cela de Suzy na prisão. 
Reportagem sobre presidiárias trans gerou conteúdos desinformativos em grupos de Facebook
Conforme mostrou a Lupa, a informação era falsa. O caso de Suzy nem sequer foi mencionado durante o programa Encontro, que na época era comandado pela apresentadora. Apesar disso, o conteúdo foi replicado em diferentes sites e plataformas, alimentando ataques contra Fátima e à população trans no geral.
‘Ideologia de gênero’ associada à esquerda
A teoria conspiratória da “ideologia de gênero” é disseminada por grupos conservadores para acusar pessoas LGBTQIA+ de tentar “confundir” crianças e adolescentes, com o objetivo de “convertê-las” em homossexuais ou transexuais e “destruir a família”. Mais recentemente, tornou-se um termo genérico usado para criticar qualquer avanço de políticas voltadas à população LGBTQIA+.
Nesse sentido, diversas postagens buscaram associar a “ideologia de gênero” a uma política de esquerda e, a partir disso, disseminar desinformação.
Em outubro de 2020, uma publicação feita no “Grupo do Soldado de Aço Resistência Patriótica”, que reúne 235 mil membros, afirmava que o PSOL queria obrigar escolas públicas e privadas a ensinarem “ideologia de gênero” por meio de uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) — o que é falso.
Publicação trazia informação falsa de que PSOL queria obrigar escolas a ensinarem 'ideologia de gênero'
O conteúdo, que também foi encontrado em outros grupos, foi verificado pela Lupa em 2020. A ação ajuizada pelo partido pedia que o STF reconhecesse o dever das escolas de “prevenir e coibir o bullying homofóbico”, respeitar “a identidade de crianças e adolescentes LGBT no ambiente escolar” e “combater o machismo”.
Meses antes, já circulavam no grupo mensagens falsas que afirmavam que um projeto de lei do PCdoB queria legalizar o incesto e a pedofilia. O conteúdo era compartilhado com fotos de políticos filiados a partidos de esquerda como Manuela d'Ávila (PCdoB-RS), Orlando Silva (PCdoB-SP) e Túlio Gadêlha (Rede-PE), que seria o relator do projeto. 
Desinformação sobre projeto de lei de autoria de Orlando Silva foi compartilhada em grupos de Facebook
O projeto de lei a qual as postagens se referem é o 3.369/2015, de autoria de Orlando Silva. A proposta, que também foi alvo de verificação da Lupa, não permite o casamento entre pais e filhos, nem legaliza a pedofilia. 
O texto de Silva cria o Estatuto das Famílias do Século XXI. O texto estabelece legalmente como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas, “independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas”.
Segundo Ligia Fabris, professora e coordenadora do projeto Mídia e Democracia na FGV Direito Rio, essa é uma estratégia usada pela extrema-direita no mundo inteiro para criar um inimigo comum e instaurar pânico moral. “A gente vê a utilização do gênero ou do discurso anti-gênero como uma cola simbólica, no sentido de aglutinar o sentimento das pessoas e mobilizá-las na forma de apoiadores. Então você aglutina essas pessoas com esse sentimento de medo, de pânico, atribuindo isso a uma figura da esquerda”, analisa. 
Grupo de edição de fotos é número 1 em conteúdos transfóbicos
Entre os grupos analisados no levantamento, chama atenção o “Edita pra mim”, que tem  por finalidade realizar a edição de fotos. Com cerca de 1,4 milhão de membros, foi o que apresentou o maior número de publicações relacionadas a transexuais, sendo 65% delas com teor negativo. 
Nessas publicações, é comum encontrar ataques transfóbicos disfarçados de “piadas”, além de uma tentativa de criminalização da população LGBTQIA+.
Nesse sentido, ataques a atletas transexuais foram recorrentes. Em um post, a brasileira Tifanny Abreu, primeira transexual a disputar uma partida de vôlei da Superliga, foi chamada de “um homem geneticamente modificado que se diz mulher”. 
Em outra publicação, compartilhada por mais de 3 mil pessoas, um usuário afirmou que a ex-jogadora de basquete Gabrielle Ludwig, que é uma mulher trans, estaria destruindo “espaços que as mulheres levaram séculos para conquistar”. 
Post transfóbico sobre atleta trans foi compartilhado por mais de 3 mil pessoas
Além de atribuir a presença da jogadora no time feminino à “ideologia de gênero”, a publicação cria uma falsa ideia de “ameaça” — narrativa constante nesses grupos e que alimenta discursos de ódio. Nos comentários, a atleta foi chamada de “monstrenga”
Discurso semelhante também foi encontrado em postagens que discutem a criação dos chamados “banheiros unissex”. Em publicação compartilhada em novembro de 2021, um usuário associou, sem evidências, a criação desses espaços a casos de abuso e pedofilia. “Muitos pedófilos e estupradores irão se aproveitar dessa ideologia de gênero que só visa degradar a família”, escreveu. 
Postagem faz falsa associação de banheiros neutros com pedofilia e abuso sexual
Para Ligia Fabris, as postagens analisadas mostram uma tentativa de veicular um discurso “falso e fantasioso, e cheio de má-fé”, que desconsidera a identidade de gênero de pessoas trans e as coloca como criminosas.
“É uma narrativa política, que coloca pessoas trans como pessoas ameaçadoras, seja à família tradicional, às mulheres, às crianças. Como se mulheres trans não fossem mulheres e fossem responsáveis por crimes de pedofilia e abusos, que, na maioria das vezes, são praticados por homens cisgênero e heterosexuais”, destaca.
Embora o “Edita pra mim” tenha hoje a finalidade de edição de fotos, Lupa identificou que o grupo foi criado em outubro de 2018 para apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência. É possível ver, no histórico do grupo, que o nome foi mudado diversas vezes ao longo dos últimos anos: “Equipe Bolsonaro de Plantão”, “Mito 2022”, e “Direita Brasil” foram alguns deles. Só em março de 2023 é que o grupo passou a ter o nome atual.
Novas pessoas passaram a administrar o grupo e, desde então, não foram encontrados conteúdos que não fossem relacionados à edição de fotos. Não é possível dizer, no entanto, se os novos administradores já eram membros do grupo.
Nota: Este conteúdo faz parte do projeto Mídia e Democracia, produzido pela Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas (FGV ECMI) em parceria com a FGV Direito Rio, Democracy Reporting International e a Lupa. A iniciativa é financiada pela União Europeia.
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