UOL - O melhor conteúdo
Lupa
Extrema-direita distorce posts irônicos de indígenas para atacá-los nas redes
20.07.2023 - 15h00
Rio de Janeiro - RJ
Conteúdos irônicos e de humor produzidos por influenciadores digitais indígenas estão sendo disseminados no Facebook e no WhatsApp por grupos da extrema-direita para desqualificar os povos originários. Os vídeos são tirados de contexto muitas vezes, associando os indígenas a uma suposta vida de "mordomias" com uso de dinheiro público – o que é falso.  
Muitas das mensagens que circulam são de ataques, com cunho preconceituoso, satirizando etnias indígenas e seus locais de moradia. "Este é um dos índios de hoje! E como os de décadas ou séculos atrás, continua na boa vida (hoje está modernizado)Por isso trouxeram os negros escravizados pro país", diz o texto de uma das mensagens compartilhadas no WhatsApp. 
No Facebook, mensagens distorcidas ou falsas usando conteúdos irônicos de influenciadores indígenas, a exemplo de que recebem uma espécie de "bolsa Funai",  tiveram um total de mais de 21 mil interações na plataforma, entre 13 de junho e 13 de julho deste ano. 
Kauri Waiãpi, mais conhecido como Daldeia, é um dos principais influenciadores indígenas que têm conteúdos compartilhados de forma enganosa por esses grupos. Ele cria vídeos usando humor para conscientizar e desmistificar o seu público sobre pautas indígenas. Só no TikTok, são mais de 2,7 milhões de seguidores. Entretanto, seus conteúdos humorísticos têm caído em grupos no Facebook e são compartilhados de forma maliciosa. 
Em um dos exemplos, Kauri aparece em um vídeo instalando uma antena da Starlink, que seria supostamente distribuída pela Funai. "A grande maioria desses vagabundos estão ricos sem fazer absolutamente nada, com Hilux zero, mansões, explorando os minérios e recebendo furtunas das famosas Ong's de fachada, sem contar a bolsa funai de míseros 15 mil reais, tudo isso por causa de pautas protecionistas dos governos de esquerda. Olha o deboche conosco pagadores de imposto que alimenta esse lixo chamada FUNAI. Ainda existem doentes mentais que é a favor dessas injustiças. Revoltante!!!", diz a legenda do post compartilhado. 
Kauri lembra que seus conteúdos são produzidos para ironizar as críticas que os povos indígenas recebem. Isso se deu após a publicação de um primeiro registro no TikTok, em 2020, que mostrava uma tradição de sua aldeia. No post, muitos comentários preconceituosos, indagando-o como era que um indígena tinha um iPhone que custava R$ 5 mil para gravar vídeos. Ou de como ele carregava a bateria de seu celular. "Eu não sabia se respondia diretamente ou através da ironia. Aí selecionei essa pergunta e fiz um vídeo dizendo que a gente carregava o celular por meio do peixe elétrico", ironizou Kauri, em entrevista à Lupa.
Os conteúdos vão além das sátiras, diz o influencer. "Eu não faço só vídeo de humor, eu trago também a realidade do meu povo dentro das minhas redes sociais. Aproveitando meu público para mostrar um pouco também como é viver mais na aldeia", diz. Mas ainda assim lamenta que seus vídeos estejam sendo distorcidos por grupos da extrema-direita. "Eu não ligo para as pessoas que estão falando mal de mim nas redes. Se meus conteúdos fossem verdade, é uma visão muito preconceituosa mesmo das pessoas, sobre os povos indígenas. Por que a gente não pode ter um iPhone? Uma Hilux? Hoje temos ministra indígena, deputado indígena, advogado indígena. E não é por isso que deixou de ser indígena", reforça.

Bolsa Funai

Em outros posts compartilhados nos grupos, Kauri é acusado de receber uma espécie de "Bolsa Funai" para comprar celulares e gravar os vídeos irônicos. Uma das mensagens compartilhadas diz: "Este 'índígena' debocha do povo e deixa bem claro que é através de suor do trabalhador que suas mordomias são garantidas. A Bolsa Funai que deveria ser usada para sustento de famílias necessitadas, está sendo usada por muitos para a compra de celulares de última geração e itens dispensáveis para quem vive da terra. O escárnio na cara do trabalhador é o pior de tudo neste vídeo lamentável e digno de revolta. Os indígenas de verdade, assim como os trabalhadores, não merecem isso. O caso precisa ser averiguado!".
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) explicou, em nota, que não existe uma "bolsa Funai". O que há, na verdade, é um programa voltado a estudantes indígenas e quilombolas. O Programa Bolsa Permanência do Ministério da Educação (MEC) é uma política pública voltada à concessão de auxílio financeiro a estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, matriculados em instituições federais de ensino superior. 
Ataques aos povos indígenas usando desinformação não são de hoje. A título de exemplo, o compartilhamento de informações falsas sobre a crise humanitária do povo Yanomami foi a principal estratégia utilizada pela extrema-direita para defender o governo de Jair Bolsonaro (PL) das denúncias de violências praticadas no território indígena. Um conteúdo falso publicado pelo site Aliados Brasil, e compartilhado pelo campo bolsonarista no Twitter, afirmou que uma ONG que denunciou a desnutrição da população indígena desviou R$ 33 milhões. A publicação foi desmentida pela Lupa.
O documento “Combate à desinformação sobre a Amazônia Legal e seus defensores”, publicado este ano pelo grupo Intervozes, mostra que os indígenas nas redes sociais são taxados com um amplo repertório de termos pejorativos e depreciativos. Alguns comentários usam termos como “tribos armadas”, “povo perigoso”, “índios armados com arco e flecha”, “índios baderneiros”. 
"Eles procuram todo tipo de estereótipo para usar contra a gente. Até pelo simples fato de a gente usar roupa, isso já é usado para afirmarem que somos menos indígenas. A gente sofre muito com essas questões preconceituosas. Já me disseram que não sou indígena, porque tenho barba. Eles tentam descredibilizar a gente" explica Rwui Manchineri, coordenador executivo da Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (Matpha) e integrante do projeto do Intervozes que mapeou desinformação na Amazônia. 

Conteúdos irônicos

Assim como Kauri, outros indígenas têm ocupado as redes sociais em muitas frentes, desde ativismo para dar visibilidade à luta que enfrentam até o uso de conteúdos irônicos contra comentários e ataques pejorativos e estereotipados. 
A digital influencer Romanã Waiãpi, do Amapá, também publica postagens com sátiras sobre povos indígenas para ironizar comentários preconceituosos. Somente no TikTok são mais de 1,5 milhão seguidores. Em um dos vídeos, ela respondeu a um seguidor sobre o que é preciso para se casar com uma indígena. "Sentar num formigueiro, carregar a sogra nas costas, alisar o suvaco do pajé, amansar onça e atravessar um rio de pelo menos 30 quilômetros nadando", disse. Em outra postagem, ela ironizou um dos comentários que a questionou sobre "com que vocês se forram quando estão menstruadas". "Não é com a folha de bananeira. É com a folha de urtiga. Entendeu?", respondeu Romanã. 
Já o influenciador Cristian Wariu, com mais de 114 mil seguidores em seu TikTok, usa o espaço nas redes sociais para desmentir boatos de forma bastante didática. Em um de seus vídeos, explica por que os povos indígenas são comumente chamados de preguiçosos. "Tudo isso tem a ver com capítulo pouco desenvolvido nos nossos livros de história, que é a escravidão indígena. Os colonizadores obrigavam os indígenas a trabalhar por longas horas em atividades pesadas, sem recursos, ou técnicas necessárias. O resultado disso foi uma alta taxa de mortalidade, fugas e doenças", destacou.
Para Kauri, não importa o jeito, mas sim a forma para combater desinformação e ataques preconceituosos. "Meus seguidores explicam pra galera que a realidade não é assim, que eu tô sendo irônico. Antes de vocês criticarem vão lá conhecer a nossa realidade, como é na aldeia". 
Clique aqui para ver como a Lupa faz suas checagens e acessar a política de transparência
A Lupa faz parte do
The trust project
International Fact-Checking Network
A Agência Lupa é membro verificado da International Fact-checking Network (IFCN). Cumpre os cinco princípios éticos estabelecidos pela rede de checadores e passa por auditorias independentes todos os anos.
A Lupa está infringindo esse código? FALE COM A IFCN
Tipo de Conteúdo: Reportagem
Conteúdo investigativo que aborda temas diversos relacionados a desinformação com o objetivo de manter os leitores informados.
Copyright Lupa. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.

Leia também


20.11.2024 - 08h00
Eleições
Novos prefeitos são em sua maioria homens brancos, héteros e cisgêneros; apenas 2,3% se declaram pretos

Nas eleições de outubro passado, mais de 5,5 mil prefeitos foram eleitos. A maioria deles é branco, homem cisgênero, hétero e com ensino superior. Apenas 128 prefeituras serão comandadas por candidatos autodeclarados pretos.

Francisco Amorim
19.11.2024 - 17h54
Internacional
G20 alerta que fakes são ameaça global e promete cobrar plataformas

A Cúpula de Líderes do G20 reconheceu a desinformação e o discurso de ódio como ameaças e se comprometeu a trabalhar em prol da transparência e responsabilidade das plataformas. Esse foi um dos compromissos da Declaração de Líderes, documento final do encontro realizado no Rio. Entenda esse e outros alertas sobre o risco das fakes ao planeta: 

Carol Macário
19.11.2024 - 16h20
Política
Fake de argentino alimentou plano para golpe e morte de Lula, diz PF

O inquérito da Polícia Federal, que trata da investigação sobre o plano de matar o então presidente eleito em 2022, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), traz detalhes de como a narrativa falsa de fraude nas eleições daquele ano engrossou o discurso de militares das Forças Especiais do Exército na tentativa de golpe de Estado.

Ítalo Rômany
15.11.2024 - 16h00
Propaganda enganosa
Influenciadores de marketing digital ensinam como criar notícias falsas para vender produtos

No YouTube, influenciadores digitais ensinam técnicas para clonar sites de notícias, como o G1 e a CNN Brasil, a fim de enganar consumidores com falsas reportagens que promovem produtos e serviços. Conhecida como “advertorial”, essa prática é usada tanto para vender quanto para aplicar golpes.

Gabriela Soares
14.11.2024 - 18h17
Política
Atentado ao STF: o que se sabe até o momento

O atentado ocorrido na praça dos Três Poderes, em Brasília, na noite de quarta-feira (13), tem deixado ainda muitas lacunas. Quem era o autor do atentado? Qual a motivação do crime? Ele agiu sozinho? O criminoso tinha alguma relação com os atos golpistas de 8 de janeiro? A Lupa apurou e reuniu o que se sabe até o momento sobre o atentado ao STF. 

Ítalo Rômany
Lupa © 2024 Todos os direitos reservados
Feito por
Dex01
Meza Digital