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O pastor que combate desinformação no meio evangélico
25.08.2023 - 08h00
Rio de Janeiro - RJ
A reportagem foi atualizada para corrigir um erro. O fiel da Congregação Cristã no Brasil que foi baleado dentro da igreja em Goiânia (GO) não morreu. Ele recebeu alta após se recuperar no hospital.
29.08.2023 - 14h52
A primeira experiência do pastor André Mello, da Igreja Presbiteriana Aliança de Florianópolis (SC), na luta contra a desinformação ocorreu há quase 20 anos, durante a campanha do desarmamento. Ele atuava em favor do controle de armas de fogo, motivado por uma preocupação pastoral: a saúde mental dos fiéis e o alto índice de suicídios. Daí veio a disposição para combater conteúdos falsos. 
“Diziam que o Brasil seria proibido de fabricar armas e que, desarmando o povo, seria decretada no país uma ditadura. Circulava um discurso que associava a iniciativa ao nazismo, alegando que o regime de Hitler teria desarmado a população antes de virar uma ditadura”, conta.
Armas destruídas em Campanha Nacional do Desarmamento no começo dos anos 2000.Foto: Isaac Amorim / Ministério da Justiça. Arquivo
Qualquer semelhança com a contemporaneidade não é, na opinião do religioso e checador de fatos, mera coincidência. Jornalista formado pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tradutor, ilustrador e desenhista, Mello diz que as mesmas figuras que hoje disseminam desinformação e tentam promover uma campanha de pânico moral, especialmente entre a comunidade evangélica, já faziam isso há no mínimo duas décadas.
O teólogo de 53 anos é um dos jornalistas que colaboram com o Coletivo Bereia, primeira agência de fact-checking religioso do Brasil. Criada em 2019 por pesquisadores, estudantes e jornalistas, o Bereia é vinculado à organização Paz e Esperança Brasil de combate à violação de direitos de populações empobrecidas. O nome é inspirado em uma passagem bíblica (livro Atos dos Apóstolos 17.10-15) e refere-se a uma antiga cidade da Macedônia (o nome atual é Véria) onde as mensagens do apóstolo Paulo eram “checadas” com as escrituras pelos moradores.
O coletivo tem metodologia própria, e a equipe é formada por 18 pessoas entre editores, repórteres e colaboradores. Eles acompanham diariamente portais de notícias gospel, discursos e pronunciamentos de políticos e lideranças cristãs com o objetivo de verificar fatos — tanto em mídias religiosas como em plataformas de rede social com conteúdos religiosos. 
Mello colabora com o Bereia desde o começo da agência. Um dos primeiros projetos que tocou foi a identificação dos principais desinformadores do meio evangélico. Hoje, além de checagens de discursos de políticos e verificações de boatos que circulam pelas redes sociais, ele também publica análises. 
“O meio religioso sempre foi permeável a figuras que tinham discurso fantasioso. Quem cresceu na igreja, por exemplo, ouviu sempre histórias estranhas sobre a Disney, sobre discos rodando ao contrário e outras bizarrices.”
– André Mello, jornalista, teólogo, tradutor e ilustrador. Pastor da Igreja Presbiteriana Aliança de Florianópolis
Algumas das figuras que propagavam lendas urbanas, como a boneca “satânica” da Xuxa e conspirações mundiais seguem atuando até hoje. “Isso era parte do discurso que pastores faziam contra o rock, contra as coisas que estariam assolando as famílias, a juventude”, diz Mello.
Se nem o discurso, nem os personagens são novos, a diferença em relação aos conteúdos falsos que circulam hoje é que sim, as próprias comunidades evangélicas por meio de coletivos, organizações não-governamentais e ministérios perceberam que isso é um problema que precisa ser enfrentado.
“Na década perdida dos anos 80, as pessoas olhavam para esses boatos e diziam: ‘não, isso é uma bizarrice, mas vai passar’. Só que não passou. A desinformação continua crescendo e sendo alimentada. E começou a se transformar em uma máquina de propaganda.”
– André Mello, jornalista, teólogo, tradutor e ilustrador. Pastor da Igreja Presbiteriana Aliança de Florianópolis

Fakes sobre vacinas e o impacto na saúde das comunidades evangélicas

A desinformação sobre vacinas, acentuada especialmente durante a pandemia da Covid-19, foi uma segunda experiência impactante de André Mello com o ecossistema das “fake news”. “Há uma coisa central no nascimento do Coletivo Bereia que é o fato de a gente perceber que as pessoas antivacinas também eram tratadas lá na década de 80 como uma ‘bizarrice’, uma coisa que passaria. Mas isso não apenas não deixou de existir, como aumentou o impacto”, lamenta. 
André Mello foi ordenado pastor em 1996. Foto: arquivo pessoal
A percepção do pastor, hoje, é que, quanto mais escolarizada é uma comunidade, quanto mais recursos tem uma família, maior a chance de não vacinar os filhos. Maior a chance de que essas crianças estejam ou passando por alguma modalidade de homeschooling ou estudem em escolas que aceitam crianças não vacinadas. 
“A desinformação provoca desgraças dentro da comunidade. Essas são as dinâmicas que me levaram, profissionalmente e espiritualmente, a entender que a gente precisa lutar pela informação, porque desinformação gera morte. A desinformação faz com que uma criança que poderia estar viva venha a falecer de uma doença que tem prevenção por vacina. A desinformação pode fazer com que um pai de família endividado pegue lá o revólver que ele comprou com facilidade e dê cabo da sua própria vida.”
– André Mello, jornalista, teólogo, tradutor e ilustrador. Pastor da Igreja Presbiteriana Aliança de Florianópolis
Mello compartilha ainda outras reflexões sobre o porquê de as vacinas e a ciência serem temas mais complexos e passíveis de virarem desinformação: tem a ver com a fé e como ela é manipulada.
“A desinformação sobre vacinas provocou mais estrago do que qualquer outro assunto, mais do que a pauta moral. Porque a ciência se relaciona com a crença ou não no milagre. Se você crê ou não no extraordinário, na cura”, diz. Por isso, discussões sobre ciência tendem a ser muito mais polêmicas do que educação sexual — muito embora a repercussão dessa última é que tenha mais tração nas redes sociais.

Desinformação gera divisão nas igrejas, diz pastor

André Mello nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Pelo lado materno, é de uma família que desde o século 17 é protestante. Do paterno, descende de nordestinos negros que migraram para o Sudeste. Cresceu dentro da Igreja Presbiteriana de Copacabana. 
Antes de ser ordenado pastor pelo Presbitério do Rio de Janeiro, em 1996, cursou cinco anos de seminário e dois anos de licenciatura. Como jornalista, tem uma trajetória consolidada dentro da comunicação religiosa. Foi diretor da Rede Presbiteriana de Comunicação, editor e colunista da ElNet/MK Comunicação, grupo de mídia focada no segmento evangélico.
Jornalista pela ECO/UFRJ, Mello dirigiu a Rede Presbiteriana de Comunicação. Foto: arquivo pessoal
Hoje, concilia a atuação na igreja e o trabalho como jornalista, tradutor e desenhista com o combate à desinformação junto ao Coletivo Bereia. Ao mencionar o trabalho como checador de fatos, Mello repete que faz isso “um pouquinho como jornalista, mas 95% como pastor”. Isso porque a desinformação, nas palavras do religioso, torna o trabalho de qualquer pastor impossível.
“Você prega uma coisa no domingo e, durante a semana, o rebanho é bombardeado por mensagens completamente distantes daquilo que se ensina na igreja. A desinformação gera fragmentação, divisão interna e toda uma cultura de ódio.”  
– André Mello, jornalista, teólogo, tradutor e ilustrador. Pastor da Igreja Presbiteriana Aliança de Florianópolis
Um exemplo drástico dessa cultura de ódio foi o caso de um fiel baleado dentro da igreja evangélica Congregação Cristã no Brasil, em Goiânia, motivado por discordâncias políticas em setembro do ano passado, um mês antes das eleições.  
“Se na sua família a política já gera briga, imagina uma igreja com várias famílias bombardeadas por desinformação? Um número muito grande de pastores tem a mesma angústia que eu. Esse cidadão vai pregar pensando assim: ‘a minha comunidade está rachada’. Ele está preocupado porque vê o efeito disso na prática, com as crianças e com as pessoas que não se vacinaram, por exemplo”, afirma. Mello lembra que, em Manaus (AM), a Igreja Presbiteriana local enterrou mais de 100 pessoas por causa do novo coronavírus. “Isso por conta de uma campanha antivacinação, de uma política de morte”, lamenta. 

Comunicação de massa e monopólio das megaigrejas 

Estudo recente feito pelo Centro de Estudos da Metrópole, da Universidade de São Paulo (USP), indicou que, em 2019, existiam 109.560 igrejas evangélicas das mais diversas denominações no Brasil. Nem todas elas, no entanto, se encaixam no perfil das chamadas megaigrejas. 
Mello tem uma percepção crítica sobre essas grandes organizações religiosas, como a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia, e a Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo, especialmente em razão do monopólio da comunicação.
Canais e rádios que fazem parte da estrutura de poder dessas corporações tendem a reverberar a pauta política e desinformativa de suas lideranças — tanto Malafaia quanto Macedo, por exemplo, já tiveram conteúdos desmentidos e até removidos das redes sociais por serem falsos. 
Além disso, esses meios são fechados para conteúdos oriundos, inclusive, de outras denominações evangélicas. “Não é estranho que não tenham outras igrejas nessas estruturas de comunicação? Que supostamente são para a pregação? Eles [os veículos] são, na verdade, moeda para troca política. E essa é uma agenda política neoconservadora, pró-armas e antivacinação. Essas pautas não são as mesmas das igrejas pequenas”, diz.  
Para o pastor, o grande interesse da bancada evangélica no Congresso e na participação política é com essas estruturas de comunicação. Ele vai além: na visão do jornalista e teólogo, a desinformação só terá solução quando se discutir com mais seriedade a democratização dos meios de comunicação no Brasil.
Além de agenda política, existe uma questão financeira também. 
“As rádios evangélicas têm importância porque estão relacionadas com o mercado fonográfico e com a as plataformas de música gospel. É uma máquina de fazer dinheiro.”
– André Mello, jornalista, teólogo, tradutor e ilustrador. Pastor da Igreja Presbiteriana Aliança de Florianópolis

O pastorado feminino como grande debate

A concentração da mídia evangélica, além de propiciar um ambiente para disseminação em massa de desinformação, atrapalha, segundo o pastor e jornalista, o debate de pautas que são importantes e urgentes na comunidade evangélica, como a participação e liderança das mulheres nas igrejas. 
“A emergência do pastorado feminino e do lugar da mulher na igreja é hoje o grande campo de mobilização e de modernização das igrejas evangélicas”, pontua. Mas nos canais e rádios do segmento, esse debate não aparece. 
“Não existe contraponto. São sempre homens pastores falando. Quanto mais masculina e antifeminista for a igreja, mais conservadoras serão as discussões. Por isso que esse é o grande tema hoje nas comunidades evangélicas.”
– André Mello, jornalista, teólogo, tradutor e ilustrador. Pastor da Igreja Presbiteriana Aliança de Florianópolis
A falta de contrapontos ou de espaços para debates não fica só no pastorado feminino. Com centenas de denominações evangélicas no Brasil, existem diferentes visões e interpretações, por exemplo, sobre batismo e até sobre a origem do mundo. 
“Sobre o tema da evolução e da criação, você também só vai encontrar o mesmo monólogo nas mídias evangélicas, geralmente as pessoas a favor da tese de um criacionismo restrito, de que a Terra tem 6 mil anos. Mas essa não é a única opinião no meio cristão”, explica o pastor — Mello, inclusive, integra a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2), grupo disposto a debater o assunto.

Desinformação mais preocupante é a ideia de um ‘enviado de Deus’ 

Muito mais do que os conteúdos enganosos sobre fechamento de igrejas, de falsas perseguições a cristãos, “mamadeira de piroca” e outras mentiras bizarras desmentidas por agências de checagem, a mais preocupante desinformação que atinge a população evangélica, na percepção do pastor e jornalista, é o que ele chama de “versão brasileira do Destino Manifesto”.
A doutrina do Destino Manifesto se espalhou pelos Estados Unidos no século 19, difundindo a crença de que Deus ou a providência divina teria escolhido os norte-americanos como um povo abençoado e com a missão de contribuir com o desenvolvimento de outros grupos e nações.
“Os conservadores norte-americanos justificaram intervenções armadas com a tese de que um determinado líder e um determinado grupo tinham sido ungidos por Deus para botar a ordem na sociedade”, explica Mello. Uma versão contemporânea brasileira dessa crença é problemática e assustadora porque ampara aqueles que se dizem “escolhidos” a agir de maneira autoritária contra tudo que atrapalhar essa suposta missão divina.
André Mello durante pregação; pastor integra a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Foto: arquivo pessoal
"Isso é fermento de muita coisa ruim que a gente vê hoje. Que se transforma numa plataforma política nas mãos de quem trabalha com desinformação. Porque essas pessoas ainda estão procurando a personalidade ou grupo que vai encarnar esse discurso. E essa é, eu diria, a narrativa mais complicada, mais que do que o pânico moral”, alerta. 
Mello lembra que um discurso muito similar foi muito bem vendido nas igrejas na época da ditadura no Brasil. “Se você pegar todos os jornais de todas as rádios evangélicas da época, da igreja católica até a Assembleia de Deus, a maioria saudou o regime militar como algo que veio trazer leis, botar a casa em ordem porque estava tudo desorganizado”, diz.

Valadão e o risco do discurso de ódio 

André Mello é também bastante crítico a figuras como André Valadão, cantor gospel e pastor da Igreja Batista da Lagoinha, investigado pela política por incitar mortes de pessoas LGBTQIAPN+.  “Ele é uma figura bastante problemática dentro do meio evangélico”, diz.
Embora ele entenda que discursos como os de Valadão encontrem menos eco do que se imagina entre os evangélicos, há uma preocupação real com o potencial catalisador do discurso de ódio. 
“A gente tem um problema que não é fácil de resolver. Porque grupos supremacistas vão defender a violência. Eu sempre fico preocupado para o caso de o discurso da lei e da ordem se juntar ao discurso da execução. É como jogar gasolina”, diz. 
“E se isso é feito em nome de Deus, aí a gente pode ver pessoas validando a violência do ponto de vista político, simbólico e até social. Esse discurso [como o de Valadão] é extremamente perigoso, ainda mais com as plataformas de mídia de comunicação que esses grupos conseguem construir politicamente”.
Antes de se despedir, Mello lembrou que conciliar a atuação como pastor com o trabalho de jornalista e checador de fatos eventualmente o coloca na mira de críticos. “Quem é de esquerda diz que fui tendencioso para a direita. Quem é de direita ataca dizendo que a gente é de esquerda”.
Para conhecer o trabalho do Coletivo Bereia: https://coletivobereia.com.br/
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