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Lupa
De CNH a cartão de vacina, criminosos falsificam documentos e ensinam golpes no Telegram e Facebook
12.03.2024 - 08h00
Rio de Janeiro - RJ
O texto foi atualizado após envio de nova nota do Youtube, explicando que os vídeos enviados pela reportagem foram removidos por violarem as Diretrizes da Comunidade
12.03.2024 - 11h00
A venda de cartões de vacina falsos e de outros documentos, como atestados médicos, RG e CNH, ocorre livremente em grupos no Telegram e no Facebook, inclusive podem ser encontrados facilmente em outras plataformas, como o YouTube. A ação de criminosos vai além, com criação de contas bancárias falsas para aplicação de golpes. Alguns perfis incluem ainda um curso de como criar um documento editável por meio de uma matriz enviada ao usuário.
Os serviços ofertados de falsificação de documentos geralmente possuem uma tabela de pagamento — o preço sofre variações conforme o tipo de documentação que é solicitado. Uma CNH no modelo antigo pode sair a R$ 50, por exemplo. Um histórico escolar de graduação chega a R$ 1,2 mil. De acordo com a publicidade, os documentos passam em todos os testes de segurança, com marca d'água, luz negra e alto relevo.
O esquema funciona da seguinte maneira: criminosos possuem uma matriz do documento a ser editada, uma espécie de modelo. Eles apenas acrescentam as informações necessárias e criam um documento falso. Após o pagamento via PIX, o criminoso entrega o resultado em formato pdf. A impressão fica por conta de quem solicitou o serviço. 
A reportagem descobriu ainda que é possível ter acesso a matrizes desses documentos de forma gratuita em sites que hospedam links para download. A partir do template, qualquer pessoa pode editar as informações com a ajuda de programas de edição. Para quem tiver dificuldades, há tutoriais que ensinam como fazer a edição desses documentos.
Post no Facebook explica mudanças na edição do novo RG

Cartão de vacinação

A venda de cartão de vacina falso não é novidade. A ação de criminosos levou a Advocacia-Geral da União (AGU), em outubro de 2023, a abrir uma ação civil contra o Telegram por causa desse golpe. 
"Verifica-se a existência, naquela rede de mensageria privada, de inúmeros grupos/canais dedicados à disseminação de desinformação e à prática de ilícitos. Nesta ação, enfocam-se os ilícitos relacionados à desinformação sobre vacinação, bem assim a venda de “passaportes vacinais” – isto é, a venda do serviço de inserção de informações falsas, relativas à vacinação do interessado, nos sistemas informacionais oficiais do Sistema Único de Saúde", diz trecho da ação da AGU (pag.2).
O documento também cita reportagem do Aos Fatos que revelou um esquema de fraude a certificados de vacinação, com alteração dos dados no sistema do SUS. Entretanto, apesar das denúncias, esse tipo de crime continua sendo cometido livremente. A Lupa identificou em ao menos três grupos no Telegram, um deles com mais de 30 mil usuários, mensagens que oferecem venda de cartão de vacinação falso para doenças como febre amarela e, principalmente, Covid-19. 
Liberdade. Não deixem que contaminem nossos pequenos, vamos livrar nossas crianças dessa covardia, doses cov1d agora obrigatório para os pequenos de 06 meses de vida em diante
– Trecho de mensagem compartilhada em grupos do Telegram
A reportagem, utilizando uma conta falsa, se comunicou com dois desses perfis por meio do WhatsApp fornecido na mensagem. A ideia era se passar por uma mãe que não imunizou o filho de 7 anos e que precisava de um comprovante de vacinação como exigência da escola para matrícula.
No primeiro contato, o criminoso perguntou que modelo específico de comprovante estávamos buscando. "É porque tem vários modelos. Eu precisaria saber de qual vc precisa", diz o golpista na mensagem. Ao explicarmos que seria um comprovante de vacina do próprio Ministério da Saúde, é enviado o seguinte áudio:
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Em seguida, o criminoso envia o vídeo mostrando o modelo do documento que iria ser utilizado e explicando que, para a escola, aquele editável não teria problema. Para tanto, ele solicita dados como nome da criança, CPF, nome da mãe, dentre outros — além do pagamento de R$ 70 pelo serviço.
Nesse momento, o perfil falso da mulher que criamos explica que, por uma questão de segurança, iria conversar com o marido, para averiguar se seria seguro. O criminoso envia um outro áudio, onde afirma que esse tipo de prática é comum e que não teríamos problemas. 
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Prints de conversas com criminosos que vendem carteira de vacinação falsa
No segundo contato, a golpista cobrou R$ 80 pelo serviço. A produção de um cartão de vacina falso só seria iniciada com um valor de entrada de R$ 30, explicou. "POR MOTIVOS DE MUITO LOTTER OU SUMIÇO APÓS O DOCUMENTO SER FEITO APENAS COM SINAL MÍNIMO. APÓS SINAL O DOCUMENTO SERÁ FEITO. PAGA RESTANTE APÓS PRONTO!". O restante do valor (R$ 50) poderia ser pago após a fabricação do documento.
A reportagem encontrou esse contato em específico em um grupo do Facebook. Por lá, o golpista mantém uma conta aberta com 1,3 mil seguidores, com diversas publicações sobre venda de documentos editáveis. 

'Se torne hoje mesmo independente nos seus trampos'

Além da venda de documentos falsos, criminosos também oferecem um curso de como criar um editável — como são chamados esses documentos. Ao se inscrever, o usuário terá acesso ao material para manipular os dados e, assim, poder aplicar o golpe. 
Um curso desse tipo, que inclui 20 matrizes de RG em 4K, sai no valor mínimo de R$ 200. Dependendo dos documentos que você precisar, o pagamento pode chegar a R$ 2 mil.  
"Você que começou a investir no 171 e não tem conhecimento na área de montagem de documentos 🪪 , preenchimento de folhas rodadas , montagem de fotos selfies segurando documentos 🤳🏼 e utilização de virtualizadores android e burladores de selfie para fazer seus trampos nos bancos .", diz uma das mensagens.
Segundo a promessa, o aluno terá acesso a videoaulas "práticas e objetivas" sobre programas de edição como Coreldraw e Photoshop para criar ou editar os documentos. O pacote inclui as matrizes dos editáveis para facilitar a 'aprendizagem'. Um dos posts afirma que já formou mais de 280 'profissionais' desde 2017
Quem possui habilidades com programas de edição pode conseguir as matrizes desses documentos em fóruns e em sites que hospedam links, tudo de forma gratuita. Em um dos vídeos a que a reportagem teve acesso no YouTube, há um tutorial que mostra o passo a passo de como editar um documento falso. 
Trecho de vídeo no Youtube que explica passo a passo de como editar uma CNH falsa

Contas bancárias falsas

No Telegram, outro serviço oferecido nas mensagens de falsificação de documentos é o de "lara" — em alusão ao termo 'laranja'. Na prática, é um tipo de fraude em que são utilizados dados bancários de uma pessoa real para realizar movimentações financeiras e adquirir produtos e serviços. 
Em um dos grupos aos quais a reportagem teve acesso, com mais de 5,7 mil membros, criminosos oferecem a possibilidade de abrir contas em bancos a partir de dados obtidos, por exemplo, em vazamentos. É possível também ter acessos a ‘laras’ com CNPJ. Nessa movimentação, a pessoa pode vender ou emprestar seus dados para criar um novo cadastro, ou simplesmente alugar uma conta ativa.
O 'laranja' titular na conta no caso, pode recuperar a conta dele, e por isso nunca deixe dinheiro na lara, pix caiu na lara? Já saca na hora pra evitar do bico roubar
– Trecho de regras e termos do grupo. 
Há também a possibilidade de a pessoa emprestar sua própria conta bancária — como uma espécie de aluguel. Nesses casos, ela recebe valores em troca de uma comissão sobre as transferências. Alguns bancos, para dificultar a abertura de contas, exigem reconhecimento facial. Contudo, os criminosos também ensinam como burlar essas regras. Há ainda pagamentos para pessoas 'emprestarem' seus rostos para validar a abertura de contas correntes digitais.
A venda de logins obtidos a partir de vazamento de dados também é outra aposta dos criminosos. "Nosso bot de db/logs está aqui para revolucionar a maneira como você encontre logins. Com um banco de dados impressionante de mais de 601.31 milhões de logins, ele é a ferramenta definitiva para encontrar o login que você precisa", diz a mensagem. Para ter acesso ao robô, é preciso pagar um valor mensal de R$ 250.

Prisão e pena

Segundo o advogado Ruan Rodrigues, especialista em direito digital, a falsificação de documentos na internet, como RG, CPF, cartão de vacina, está sujeita à pena de dois a quatro anos de reclusão, de acordo com o artigo 155 do Código Penal. "Segundo o artigo, é crime 'subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel'. Nesse caso houve a subtração, para si, de coisa alheia (dados pessoais)", explica.
O delito pode ser imputado também pelo artigo 299, que diz que é crime "omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante". Em relação aos serviços de 'laranja', Rodrigues explica que esse é um exemplo de crime de falsidade ideológica também previsto no artigo 299 do Código Penal,
De acordo com o artigo 298 do Código Penal, falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro pode ser punido com até 5 anos de prisão.
O advogado Márcio Stival, especialista em direito digital, também reforça que a produção de documentos falsificados, com a sua comercialização, pode ser tipificada pelos crimes de falsidade documental, previstos nos artigos 296 ao 305 do Código Penal, em especial o artigo 297 que se refere à falsificação de documento público. 
A Lei nº 12.737/2012 tipificou ainda um novo crime denominado 'Invasão de Dispositivo Informático', previsto no art. 154-A, do Código Penal, diz Rodrigues. "Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita", diz trecho do artigo. A pena é de detenção de três meses a um ano, e multa.
Sobre a oferta de cursos que ensinam a criar documentos falsos, o Código Penal, em seu artigo 286, descreve o delito de incitação ao crime, que consiste em "incentivar, estimular, publicamente, que alguém cometa um crime" e prevê pena de detenção de três a seis meses e multa.
"Lembrando que em todos esses casos podemos analisar a possibilidade também da Lei nº 14.155/21, que alterou o crime de invasão de dispositivo informático, melhorando sua redação e aumentando substancialmente suas penas", reforça Rodrigues.

Outro lado

Em nota, o Youtube explicou que não é permitido conteúdo com instruções sobre como falsificar documentos e dinheiro, bem como a venda de documentos dessa natureza. "Também não permitimos conteúdo que demonstre como usar computadores ou tecnologia da informação com o objetivo de roubar credenciais, comprometer dados pessoais ou causar danos graves a outras pessoas", diz o texto. A plataforma informou ainda, após publicação da reportagem, que os vídeos citados no texto foram removidos por violarem as Diretrizes da Comunidade.
O Telegram, em nota, afirmou que tem moderado ativamente conteúdos nocivos na plataforma, incluindo a publicação e venda de informações privadas. "Nossos moderadores usam uma combinação de monitoramento proativo em partes públicas da plataforma, além de aceitar denúncias de usuários para remover conteúdo que viole nossos termos de serviço", diz. Os links dos grupos enviados pela reportagem foram excluídos pela plataforma. 
A Meta também foi consultada. Em nota, informou que os padrões da comunidade não permitem que os serviços sejam usados para promover atividades criminosas. "Estamos sempre aprimorando a nossa tecnologia para combater atividades suspeitas", explica. Entretanto, os grupos com venda de documentos falsos ainda estavam ativos no Facebook até a tarde desta segunda-feira (11).
Consultados pela Lupa sobre ações em relação a esses crimes de falsificação de documentos e de cartão de vacina, a Polícia Federal, o Ministério da Saúde e a Receita Federal não responderam. Se houver resposta, o texto será atualizado.
Sobre atestados médicos falsos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) apresentou ao Ministério do Trabalho e Emprego, no final de fevereiro deste ano, uma proposta de implementação de um modelo de controle desse tipo de documento em todo o país. O sistema será um validador de todos os atestados emitidos pelos médicos brasileiros, os quais poderão ter sua autenticidade verificada de forma eletrônica. Ainda não há previsão para implementação. 

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