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Fakes são parte de disputa narrativa pela memória da Marielle, diz viúva Monica Benicio
14.03.2024 - 11h44
São Paulo - SP
Em 14 de março de 2018, a então vereadora Marielle Francisco da Silva foi assassinada no Rio de Janeiro (RJ), junto com o motorista Anderson Gomes. Desde então, seis anos de investigações sobre o crime foram permeados por notícias falsas e desinformação sobre a vida política, pessoal e as próprias circunstâncias da morte da parlamentar. Em entrevista à Lupa, a viúva de Marielle e também vereadora, Monica Benicio (PSOL-RJ), diz que há uma “disputa política” pela memória de Marielle. 
“Não houve só a execução do corpo físico dela. Imediatamente, sincronizado àquele assassinato, houve uma tentativa imediata de assassinar a memória da Marielle, de assassinar a luta da Marielle como defensora dos direitos humanos, sua trajetória”, conta. 
Em 2019, a Polícia Civil concluiu que o assassinato da vereadora foi cometido pelos ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz. Eles estão presos e aguardam júri popular, ainda sem data marcada. Em dezembro de 2023, Ronnie Lessa firmou acordo de delação premiada com a PF. O mandante do crime, porém, segue desconhecido. Na quarta-feira (13), o Ministério Público do Rio de Janeiro pediu que o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa seja também levado a júri popular. Ele é acusado de ter monitorado Marielle antes do crime e participado na elaboração do assassinato.
Uma reportagem da Lupa feita em março de 2023 mostrou que, cinco anos após o crime, as plataformas de redes sociais ainda mantinham no ar posts desinformativos e discursos de ódio sobre o caso – foram encontradas ao menos 90 postagens que alcançaram mais de 150 mil pessoas.
À Lupa, Monica também comenta sobre as ações que, desde 2018, precisou tomar para proteger a si mesma de ameaças. “Eu tenho uma medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) [ferramenta na qual a comissão demanda que o Estado proteja cidadãos em risco grave e urgente]. Existiram inúmeras tentativas, inclusive, de que essa medida fosse derrubada, porque esse é um instrumento importante também nessa colaboração da luta por justiça”.
A seguir, veja os principais trechos da entrevista com Monica Benicio. 
Entre muitas figuras políticas no Brasil, a Marielle chama atenção por ser um alvo de notícias e informações falsas a seu respeito. Você se lembra quando e como percebeu esses ataques? 
A Marielle foi executada voltando de uma agenda de trabalho, no centro de uma das principais capitais do mundo – que estava sob uma intervenção militar federal, na época – e o corpo ainda não tinha sido retirado do local do crime quando já circulavam fake news a respeito dela. Chegaram até mim fotos de uma mulher, que nada tinha a ver com a Marielle, nenhuma semelhança física, sentada no colo de um homem, e diziam que aquela era a Marielle sentada no colo do Fernandinho Beira-mar. 
Também começou a circular uma falsa narrativa de que a Marielle teria sido eleita pelo tráfico e que sua morte teria ligação com o não cumprimento de acordos. E isso produzindo uma narrativa que buscava quase que justificar o assassinato da Marielle através disso, como se aquela violência, acontecendo com qualquer pessoa que fosse, pudesse ser justificada.
A partir disso, o caráter das fake news ganhou contornos que potencializava as dores, as preocupações e não trazia respostas. Isso também ligou um alerta de que tempos muito difíceis estavam por vir. Porque não houve só a execução do corpo físico dela. Imediatamente, sincronizado àquele assassinato, houve uma tentativa imediata de assassinar a memória da Marielle, de assassinar a luta da Marielle como defensora dos direitos humanos, sua trajetória na política. E isso foi uma coisa que foi muito chocante.
Imediatamente, sincronizado àquele assassinato, houve uma tentativa c de assassinar a memória da Marielle, de assassinar a luta da Marielle como defensora dos direitos humanos, sua trajetória na política
– Monica Benicio, viúva de Marielle e vereadora do Rio de Janeiro (RJ) pelo PSOL
Monica e Marielle cultivaram relacionamento durante 14 anos. (Foto: Arquivo pessoal)
Você enxerga essa onda imediata de desinformação como algo previamente orquestrado? 
Eu te confesso que é uma lacuna para mim e cabe ser investigado. Porque a gente não tem dúvida de que, infelizmente, foi um crime muito bem executado, muito bem planejado, mas é fato também que faltou vontade política para a elucidação desse assassinato mais rápido. Haja vista todos os contratempos que tiveram as investigações, as inúmeras provas delegadas, as influências internas e externas, as próprias institucionalidades que tentavam mudar algumas das investigações, enfim. Foram muitos erros ao longo desses seis anos.
Mas o fato de o corpo da Marielle ainda não ter sido retirado do local do crime quando já existiam fake news dessa natureza, com essa complexidade circulando, preocupa muito. E essa é a minha opinião pessoal, à parte do inquérito. O que eu acho é que isso deve ser investigado também. A quem interessava que a memória da Marielle fosse imediatamente destruída?
Nesses seis anos, é possível identificar o movimento dessas narrativas? Há algum padrão que chame a sua atenção?
Eu acho que em datas-chave [como o aniversário de morte] tudo se potencializa. Tanto o pedido por justiça e, de novo, a sociedade como um todo lembrando um pouco daquela violência com um sentimento de indignação e busca por resposta, quanto essa disputa constante sobre a própria memória. Daqui a 50 anos quem estará contando sobre a memória da Marielle? Quem estará falando sobre quem foi Marielle Franco, a mulher, a defensora dos direitos humanos? A vereadora que era feminista e socialista? Quem vai contar essas histórias? Então, hoje, neste exato momento, o tempo é fundamental para essa disputa da narrativa do que será a memória da Marielle no futuro. E é claro que para a extrema-direita, um campo conservador, quanto mais desqualificada for essa imagem, mais fragilizada ela será.
E eu acho ao longo do tempo que ela [a desinformação a respeito de Marielle] foi ficando mais grave. É uma disputa. A narrativa da memória da Marielle é uma disputa constante por todos os campos. De um lado, quem tem apreço pela democracia defendendo que o Brasil precisa responder quem mandou matar a Marielle. E, ao mesmo tempo, aqueles que estão menos preocupados com isso, e mais preocupados com um cenário que possa retroceder no direito das minorias, têm interesse e objetivo de que esse símbolo seja desgastado e seus valores deturpados. É uma disputa política.
A narrativa da memória da Marielle é uma disputa constante por todos os campos. [...] É uma disputa política.
– Monica Benicio, viúva de Marielle e vereadora do Rio de Janeiro (RJ) pelo PSOL
E quais são as estratégias para lidar com isso hoje no campo jurídico e pessoal? 
Eu tenho, desde 2018, uma medida cautelar da Comissão Interamericana [órgão executivo que observa e protege a defesa dos Direitos Humanos]. Existiram inúmeras tentativas, inclusive, de que essa medida fosse derrubada, porque esse é um instrumento importante também nessa colaboração da luta por justiça. Estou dentro do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). Então, os cuidados dentro das possibilidades técnicas e jurídicas, eles são tomados, mas essas violências acontecem e acho que por muitas vezes, falando pessoalmente do meu caso, o impacto simbólico acaba tendo um desgaste muito maior. 
Monica Benicio em discurso no plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro (Foto: Divulgação)
Você foi alvo de desinformação e ameaças voltadas diretamente à sua pessoa, independentemente da Marielle? Como foi para você lidar com isso? 
Sou um alvo desde 2018. Enquanto ainda não estava nem me entendendo da hipótese de figura pública, eu estava cumprindo para mim um papel que era de cobrar justiça para minha esposa. Sequer ainda era um entendimento de que eu estava cobrando justiça para uma figura pública, para uma vereadora, ou para um símbolo. Isso foi sendo adquirido ao caminhar da luta. No primeiro momento, a minha indignação vinha da minha dor enquanto viúva que sequer conseguia ver justiça. Se é que a gente consegue pessoalmente, depois de uma violência como essa, ver justiça.
E isso veio numa escalada. À medida que eu estava ali lutando para preservar uma memória, tinha um outro grupo lutando para destruir. E sendo eu a esposa, portanto tendo um conhecimento sobre a humanidade daquela mulher, avançavam as violências – simbólicas, subjetivas, objetivas – que chegavam como ameaças por e-mail, xingamento nas ruas… A partir do momento que você vai se tornando uma figura pública com maior visibilidade, ainda mais numa pauta como essa, os ataques vão acontecendo.
Em agosto do ano passado, mês da visibilidade lésbica, eu recebi ameaças, junto com outras parlamentares também LBTs, muito violentas. No meu caso, que eu cumpro o plenário na Câmara Municipal dizendo que eu sou uma ‘vereadora sapatão’ e uso este lugar como um ato político, as escaladas da violência vêm muito mais acentuadas com esse recorte. Além disso, há ameaças que dizem que eu terei o mesmo fim da Marielle. Tenho uma equipe que me poupa emocionalmente de determinadas coisas, as mais graves a gente toma as providências jurídicas, de ir até a delegacia, prestar depoimento, fazer o boletim de concorrência.
No meu caso, que eu cumpro o plenário na Câmara Municipal dizendo que eu sou uma ‘vereadora sapatão’ e uso este lugar como um ato político, as escaladas da violência vêm muito mais acentuadas com esse recorte. Além disso, há ameaças que dizem que eu terei o mesmo fim da Marielle
– Monica Benicio, viúva de Marielle e vereadora do Rio de Janeiro (RJ) pelo PSOL
Você possui um trabalho, como vereadora, nessa área da desinformação? E qual a sua leitura sobre o atual debate sobre a regulamentação das redes sociais no Brasil? 
A Câmara Municipal não é um espaço fácil, não é um espaço favorável, inclusive, às pautas progressistas. Para você ter uma ideia, em 2021, eu apresentei um projeto de lei que era um programa de Combate às Notícias Falsas (fake news). Existiu toda uma elaboração sobre a política pública. Esse projeto foi arquivado [por ter sido considerado inconstitucional]. Sequer foi a debate. Houve um outro também que trata sobre criar um dia de combate às fake news – um projeto tido como menos polêmico, mas mesmo assim enfrentou resistência e teve vereadores que votaram contra, como, por exemplo, o filho do ex-presidente da República [Carlos Bolsonaro, vereador no Rio de Janeiro pelo Republicanos].
Então, dos mais simbólicos aos mais objetivos na construção de política pública, esses projetos enfrentam resistência dentro da Câmara Municipal a ser discutido e a ser elaborado. É claro que isso, para mim, é um problema. Mas eu acho que não justifica uma desmotivação de trazer o debate. 
Acho que esse debate [sobre desinformação] é urgente, ainda mais numa sociedade que tem esse vínculo com a tecnologia, com as redes sociais, com a velocidade dos acessos e conteúdos que recebe, muitas vezes sem fazer triagem, sem conferência de fontes. Fica uma disputa de narrativa daqueles que têm mais influências digitais. Então, acho que [construir] uma sociedade que esteja atenta a esse debate, e a como esse debate deve ser feito, é fundamental. 
Mas levar isso para dentro do espaço da política institucional me parece que está ainda muito mais longe do que a gente conseguir ter efetivamente uma sociedade atenta e comprometida a dizer: ‘olha, o combate à fake news tem que estar associado à defesa da democracia’. Porque o que acontece com a desinformação e com os excessos de informações mentirosas que a gente recebe, que servem para fazer manipulação, direcionamento político, enfim, é absurdo. 
Acho que esse debate [sobre desinformação] é urgente, ainda mais numa sociedade que tem esse vínculo com a tecnologia, com as redes sociais, com a velocidade dos acessos e conteúdos que recebe, muitas vezes sem fazer triagem, sem conferência de fontes.
– Monica Benicio, viúva de Marielle e vereadora do Rio de Janeiro (RJ) pelo PSOL

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