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Caso Marielle: as diferenças entre falas de suspeitos em 2018 e as conclusões da PF
24.03.2024 - 21h45
Suspeitos de serem os mentores do assassinato de Marielle Franco chegaram em avião da PF a Brasília. Foto: José Cruz/Agência Brasil
A divulgação do relatório da Polícia Federal (PF) mostra uma série de diferenças entre as declarações dadas à imprensa à época pelos suspeitos de serem os mandantes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes e o que realmente foi planejado, de acordo com a investigação detalhada no relatório final divulgado neste domingo (24).
Um levantamento da Lupa reuniu declarações públicas dos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão, apontados como mandantes do crime, e de Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, suspeito de atrapalhar a investigação. O resultado mostrou que a narrativa apresentada por eles à imprensa divergiu da apuração da PF. Os três investigados foram presos neste domingo (24), após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizar a operação da PF.
Entre as incoerências, a reportagem identificou que um dos acusados negou ter tido contato próximo com a ex-vereadora. O advogado de Rivaldo Barbosa foi procurado e o texto será atualizada em caso de resposta. O contato do advogado dos irmãos Brazão não foi localizado.
Veja, a seguir, as principais contradições dos suspeitos nos últimos anos:

Federalização das investigações 

Estou muito confiante. Confio na Polícia Civil. Quem quiser ajudar, receberemos ajuda. Temos convicção de que daremos a resposta suficiente
– Rivaldo Barbosa em entrevista em 15/3/2018 ao portal G1 
Um dia depois do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, em 15 de março de 2018, o então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa, preso pela suspeita de ter usado o cargo para proteger os irmãos Brazão e impedir que as investigações chegassem aos dois, disse em entrevista que confiava na Polícia Civil para solucionar o crime e que estava aberto a qualquer ajuda. A declaração pública do ex-delegado naquela ocasião, no entanto, se opõe ao comportamento dele antes e depois da morte da vereadora.
Segundo relatório da PF (páginas 112 e 122), Barbosa teria feito uma única exigência aos supostos mandantes para assegurar a impunidade do crime: que a execução não fosse na Câmara dos Vereadores do Rio. O documento da PF explica que Ronnie Lessa admitiu ter sugerido monitorar Marielle na saída da Câmara, mas essa alternativa foi descartada. 
A apuração da PF indica que essa exigência está relacionada a uma tentativa de afastar a hipótese de crime político (página 274) e, como consequência, apartar a atribuição da Polícia Federal para investigar o caso. Isso porque, caso o crime fosse federalizado, ou seja, fosse para as mãos da PF, Barbosa perderia a sua rede de influência sobre a apuração.
Reprodução de delação de Ronnie Lessa - Imagem: relatório da Polícia Federal (pág 274)
Vale pontuar que Barbosa foi nomeado chefe da Polícia Civil fluminense em 13 de março de 2018, — um dia antes da morte de Marielle e Anderson. A nomeação foi feita pelo então Interventor Federal do RJ no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), Walter Braga Netto. O general é ex-ministro da Casa Civil no governo de Jair Bolsonaro (PL) e ex-candidato à vice na chapa de Bolsonaro.
Estamos diante de um caso extremamente grave que atenta contra a dignidade da pessoa humana, que atenta contra a democracia. Quero agradecer ao deputado Marcelo Freixo por ter vindo à chefia da Polícia Civil, é uma demonstração de apreço e respeito pela instituição. Vamos adotar todas as formas possíveis e impossíveis para dar resposta a este caso gravíssimo.
– Rivaldo Barbosa em entrevista no dia 15/3/2018 ao telejornal RJTV

Tentativas de obstrução

Rivaldo Barbosa fez diversas declarações públicas enquanto chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, logo nas primeiras semanas após a morte de Marielle e Anderson, que, segundo a investigação da Polícia Federal, eram falsas. 
Diferentemente das palavras e ações, contudo, a PF descobriu que, além de exigir que a morte não fosse originada na Câmara para evitar a tese de crime político e, com isso, a federalização do caso, Barbosa fez uma série de tentativas de obstruir as investigações na própria Polícia Civil.
Nós estamos no caminho certo. A complexidade está na forma de atuação dos assassinos. Mas, a gente está fazendo de tudo para esclarecer essa atividade criminosa.
– Rivaldo Barbosa em entrevista no dia 17/4/2018 à rádio CBN
Uma delas foi a nomeação do delegado Giniton Lages, nome de confiança de Barbosa, para atuar no caso. O relatório da PF (página 333) apresenta quatro exemplos de tentativa de obstrução, entre os quais desleixo na captação e análise das imagens de câmeras de segurança e descarte do aparelho celular apreendido de Eduardo Almeida Nunes de Siqueira, investigado pela clonagem do carro usado no assassinato.  
Rivaldo Barbosa foi nomeado chefe da Polícia Civil do RJ em 8 de março e empossado em 13 de março de 2018 - Imagem: reprodução
Para PF, de todas as condutas que supostamente tinham a intenção de atrapalhar a investigação, quatro exemplos são “inequívocos de que o aparato policial não somente se absteve de promover diligências frutíferas para a investigação, mas também concorreu para a sabotagem do trabalho apuratório”, diz o documento (página 333). 
Outra conclusão da PF que desmente as falas de Rivaldo Barbosa é que, às 9h19 do dia 15 de março de 2018, 12 horas após os assassinatos e pouco antes de ele dar uma entrevista ao telejornal RJTV, a Delegacia de Homicídios da Capital teria vazado propositadamente informações. Segundo o documento (páginas 330 e 331), a informação vazada foi a de que as munições usadas no delito eram de um lote (UZZ-18) vendido para a Polícia Federal em 2006. O objetivo dessa divulgação, segundo a PF, foi “repelir a atuação da força de segurança federal no caso”.

Família Brazão e Marielle

Conhecia a Marielle apenas de nome e por dois momentos: quando da eleição e depois por esse infeliz acontecimento que foi a morte dela
– Domingos Brazão, em fala dada à imprensa em junho de 2018
Em entrevista dada ao UOL em 24 de janeiro deste ano, Domingos Brazão voltou a negar envolvimento com o assassinato de Marielle Franco. Em sua fala, também afirmou que não conhecia a ex-vereadora e que só veio a ter ciência sobre quem ela era a partir da tragédia, afirmação que já tinha feito em 2018.
Eu não conhecia, não lembro da vereadora Marielle nem como assessora do Freixo. Certamente foi, mas eu não lembro. Não a conhecia. Não a conheci como vereadora na época, eu tenho irmão vereador, enfim, que teve quatro mandatos também, hoje, deputado federal, já no segundo mandato. Eu não lembro dela. Eu ouvi falar muito da Marielle, infelizmente, quando aconteceu essa trágica ocorrência com ela.
– Domingos Brazão em entrevista em 24/1/2024 ao UOL. 
O relatório da PF, contudo, traz outra versão sobre esse fato. De acordo com o ex-policial militar Ronnie Lessa, os irmãos Brazão tinham conhecimento do papel da ex-vereadora — ela tinha se tornado, segundo Lessa, "um obstáculo aos interesses dos irmãos" (página 183). Os motivos são diversos, dentre eles a atuação da ex-vereadora no combate à expansão das milícias.
Lessa afirma em seu depoimento que, em setembro de 2017, é que se tem conhecimento do motivo que levaria ao assassinato de Marielle Franco. Dentre os obstáculos, o ex-PM cita as reuniões que a ex-vereadora mantinha com lideranças comunitárias da região das Vargens, Zona Oeste do Rio de Janeiro, para que a população não aderisse a novos loteamentos situados em áreas de milícia — o que afetaria os negócios dos irmãos Brazão. "Esclarecendo-se, contudo, que este seria apenas um exemplo, tendo em vista que os riscos decorrentes da atuação de Marielle Franco eram mais abrangentes e se estenderiam à problemática dos loteamentos ilegais de maneira geral", diz trecho do relatório da PF (página 184).
O estopim, segundo uma testemunha, teria sido a atuação de Marielle Franco em torno do projeto de Lei à Câmara 174/2016 — vindo a se tornar a Lei Complementar 188/2018, proposta pelo então vereador Chiquinho Brazão. O PLC flexibilizava regras de regularização de terras. De acordo com a desembargadora relatora do processo, Katya Monnerat, que julgou a constitucionalidade do projeto, "vê-se, igualmente, que a malfadada lei protege lotes sequer ocupados, o que seria um incentivo à especulação imobiliária de áreas dominadas por milícias, por exemplo, o que é de curial sabença". A lei foi declarada inconstitucional em setembro de 2019 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Chiquinho Brazão demonstrou, segundo testemunha, reação de "descontrole" por causa da participação de Marielle no PLC. "QUE dias depois, o depoente se recorda que CHIQUINHO teria reclamado da votação contrária de MARIELLE, demonstrando irritação fora do comum e jamais vista pelo depoente" (página 227).
Ainda segundo Ronnie Lessa, os irmãos Brazão tinham conhecimento sobre Marielle principalmente por causa das informações que eram repassadas por um miliciano infiltrado no PSOL, o Laerte Lima da Silva, preso em 2019. Laerte se filiou ao PSOL em 2016 e era o responsável por 'municiar' os irmãos Brazão com as informações sobre a atuação da ex-vereadora. 
"Então, mencionou-se que, por conta de alguma animosidade, haveria um interesse especial da Vereadora em efetuar este combate nas áreas de influência dos BRAZÃO, dado que seria oriundo das ações de infiltração de LAERTE. Nesse momento, ponderou- se a possibilidade de que este poderia ter sobrevalorizado ou, até mesmo, inventado informações para prestar contas de sua atuação como infiltrado. Nas palavras de RONNIE LESSA, LAERTE poderia ter “enfeitado o pavão”, levando os Irmãos ao equivocado superdimensionamento das ações políticas de Marielle Franco nesta seara", diz trecho do relatório da PF (página 184).

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