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Lupa
Políticos desinformam sobre tragédia no RS e atiçam base contra imprensa e opositores
17.05.2024 - 14h11
Florianópolis - SC
A reportagem foi atualizada para incluir resposta do deputado federal Daniel Freitas (PL-SC).
03.12.2024 - 12h40
Os danos no município de Roca Sales - Imagem: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini
Políticos têm usado as redes sociais para fazer coro à desinformação sobre a tragédia climática no Rio Grande do Sul, descredibilizar o trabalho da imprensa e atacar as instituições estatais. Levantamento da Lupa mostrou que, entre 1º e 15 de maio, ao menos 12 parlamentares bolsonaristas disseminaram informações descontextualizadas ou fakes já desmentidas, especialmente sobre doações supostamente barradas.  
Só no Facebook, a reportagem identificou ao menos 30 conteúdos falsos ou descontextualizados sobre as enchentes no RS publicados entre 1º e 15 de maio por parlamentares como os deputados Daniel Freitas (PL-SC), Gustavo Gayer (PL-GO), Delegado Caveira (PL-PA), Bia Kicis (PL-DF) e Carla Zambelli (PL-SP), entre outros. 
Em 8 de maio, por exemplo, o deputado Delegado Caveira (PL-PA) reuniu em uma mesma publicação várias fakes já desmentidas, como a falsa afirmação de que marmitas só eram liberadas com aval de nutricionista, que o governo estaria exigindo nota fiscal de doações e que a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) estaria multando todos os caminhões por excesso de peso. 
Vale pontuar que o caso específico de um comboio de carretas que foi notificado pela ANTT em Santa Catarina por estar com peso acima do permitido — cuja multa foi anulada pela agência — foi usado por parlamentares, como Caroline de Toni (PL-SC), Zé Trovão (PL-SC) e Evair Vieira de Melo (PP-ES) para generalizar a situação e insinuar que todos os caminhões com donativos em direção ao Rio Grande do Sul estariam sendo penalizados.À Lupa, a ANTT confirmou que "houve casos isolados de autuação por excesso de peso" e que todas as autuações foram anuladas. A agência publicou uma nota afirmando que não estava retendo veículos de carga nas vias de acesso ao Rio Grande do Sul e que os veículos de carga que passam pelas balanças em rodovias estão sujeitos a um procedimento simplificado de fiscalização e são liberados para seguir viagem. 
O senador Cleitinho (PL-MG) também desinformou sobre o assunto. Em 6 de maio, publicou um vídeo afirmando que a secretaria de estado do Rio Grande do Sul estava barrando caminhões por falta de nota fiscal — o que já havia sido desmentido no dia anterior, em 5 de maio.
Outro exemplo foi o conteúdo publicado pelo deputado federal Daniel Freitas (PL-SC), que falsamente afirmou que o prefeito de Canoas (RS) teria publicado um decreto permitindo o confisco de doações. Essa informação não procede. Na verdade, o decreto nº 182, de 10 de maio de 2024 — que faz referência ao decreto 174, de 4 de maio de 2024 — não tem como objetivo "legalizar" o roubo ou confisco de doações de centros de voluntários, mas sim acelerar a compra de produtos de necessidade básica. 

Boatos sobre resgates e o discurso do ‘povo pelo povo’

Outro alvo recorrente nesse período foi a atuação do governo em relação aos resgates. Insinuações sem provas ou publicações falsas feitas por parlamentares sugerem que empresários estariam fazendo mais resgates que os próprios órgãos ligados aos governos federal, estadual e municipais. Também foram recorrentes publicações que alegam que apenas civis voluntários estão trabalhando
Para especialistas ouvidos pela Lupa, esse discurso do “povo pelo povo” está sendo instrumentalizado por políticos e influenciadores. “É um discurso alienante e que ignora que o Estado não é só o poder executivo e legislativo, mas é também a universidade, os bombeiros, o departamento de água e esgoto, a defesa civil, a polícia, ou seja, muitos dos que estão na linha de frente da gestão da tragédia”, diz a professora de ciência política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Ana Júlia Bernardi, diretora de projetos do Instituto Democracia em Xeque. 
Segundo Bernardi, o discurso repete a narrativa que posicionou a extrema direita como sendo uma alternativa ao que está posto, ou seja, “eu sou diferente desses políticos que estão aí e não fazem nada” — “e muitos não são assim diferentes”, diz.

Ataques à primeira-dama e ajuda de Portugal

O show da Madonna no Rio de Janeiro, em 4 de maio, motivou uma primeira onda de conteúdos falsos. Deputados como Gustavo Gayer (PL-GO), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Mario Frias (PL-SP) e Delegado Caveira (PL-PA), por exemplo, usaram uma nota no jornal o Globo que especulava, sem confirmação, sobre uma suposta ida da primeira-dama, Janja Lula da Silva, à apresentação da cantora, para atacá-la e acusá-la de zombar do povo gaúcho. 
A primeira-dama não compareceu ao show da Madonna, mas a fake estava criada e o que se espalhou nas redes sociais foi que ela teria dançado e debochado da tragédia no Sul do país. 
Outra narrativa falsa alimentada por políticos, essa mais recente, foi a de que o governo brasileiro teria recusado doações de Portugal. A senadora Bia Kicis (PL-DF) e a deputada Carla Zambelli (PL-SP) foram algumas das parlamentares que insuflaram as redes com essa desinformação — desmentida pela Lupa: o governo federal se manifestou publicamente a favor de receber apoio e já articula uma forma de transportar o material para o Brasil.

Fakes aparecem em justificativas de Projetos de Lei na Câmara

Entre 1º e 13 de maio, deputados apresentaram ao menos 101 projetos de lei (PLs) na Câmara dos Deputados relacionados à tragédia no Rio Grande do Sul. Dois deles usaram desinformação sobre supostos entraves do governo às doações como justificativa.
Em 7 de maio, 25 deputados — Coronel Meira (PL-PE), Carla Zambelli (PL-SP), Marco Feliciano (PL-SP), Cabo Gilberto Silva (PL-PB), Silvia Waiãpi (PL-AP), Sargento Gonçalves (PL-RN), Coronel Ulysses (União-AC), Delegado Caveira (PL-PA), André Fernandes (PL-CE), Julia Zanatta (PL-SC), General Girão (PL-RN), Zucco (PL-RS), Zé Trovão (PL-SC), Filipe Martins (PL-TO), Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP), Evair Vieira de Melo (PP-ES), Mauricio Marcon (Podemos-RS), Mario Frias (PL-SP), Dr. Jaziel (PL-CE), Sargento Fahur (PSD-PR), Delegado Palumbo (MDB-SP), Marcos Pollon (PL-MS), Gustavo Gayer (PL-GO), Daniel Freitas (PL-SC) e Coronel Chrisóstomo (PL-RO) — apresentaram o PL 1633/2024 que, em síntese, criminaliza o impedimento ou a criação de embaraços administrativos ao serviço de socorro ou de entrega de doações em casos de calamidade pública. 
Embora a proposta seja pertinente, os parlamentares justificaram o PL com relatos falsos ou distorcidos de que caminhões com donativos estariam sendo barrados na entrada do RS — essa informação não procede; casos isolados passaram a ser generalizados e compartilhados como se todos os caminhões com donativos em direção ao Rio Grande do Sul estivessem sendo penalizados. O PL também foi justificado com a informação falsa de que o fornecimento de medicamentos teria passado por “óbices e embaraços para chegar a quem precisa” — o que não é verdade.
Um outro PL (1571/2024), apresentado na Câmara em 6 de maio pelos deputados Gilson Marques (Novo–SC) e Marcel Van Hattem (Novo-RS), propõe um programa emergencial de incentivo a donativos e voluntariado para situações de emergência e calamidade pública. 
Na justificativa da proposta, contudo, os deputados usaram relatos falsos de que prefeituras teriam barrado doações e distribuição de alimentos por falta de nutricionista — informação já desmentida pela Lupa

Políticos reclamam de censura e acusam governo de perseguição

No Telegram e no YouTube, o LupaScan — plataforma de monitoramento das redes sociais de políticos da Lupa — identificou que políticos apontados por publicar informações enganosas têm enviado aos apoiadores a mensagem de que estão sendo perseguidos. 
As acusações de censura e perseguição aumentaram dias após o ministro Paulo Pimenta, da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, ter enviado em 7 de maio, ao ministério da Justiça, um pedido de investigação sobre fake news sobre as enchentes contra o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o senador Cleitinho Azevedo (Republicanos-MG) e o coach Pablo Marçal. 
Deputados como Kim Kataguiri (União-SP), Julia Zanatta (PL-SC), Nikolas Ferreira (PL-MG) e Marcel Van Hattem (Novo-RS) e o senador Marcos Rogério (PL-RO), por exemplo, reforçaram o apoio aos colegas, também alegando perseguição por parte do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e atacando veículos de imprensa, especialmente a Rede Globo. 
A Lupa entrou em contato com os deputados citados. Apenas a assessoria do deputado Daniel Freitas (PL-SC) respondeu até as 16h15 de 17 de maio.  

O que diz o deputado Daniel Freitas

Segundo a assessoria do parlamentar, que desinformou ao afirmar que o prefeito de Canoas (RS) teria decretado o confisco de doações, Freitas foi levado a essa interpretação porque o texto no Diário Oficial do município não estava claro, “o que levou não só o deputado Daniel, assim como diversas outras pessoas, ao entendimento exposto”. A comunicação de Freitas também argumentou que a “própria prefeitura adicionou um parágrafo ao decreto justamente para que a mensagem não ficasse dúbia”. 
De fato, como mostrou verificação da Lupa, após a disseminação de conteúdos enganosos sobre o decreto que determinava a requisição administrativa de itens urgentes para a população, como colchões, lençóis e até papel higiênico, entre outros, a prefeitura explicou que incluiria um parágrafo único detalhando “a natureza jurídica” do decreto, ou seja, o significado da expressão usada.
Vale pontuar que a requisição jurídica está prevista na Constituição Federal (Art 5º, inciso XXV) e pode ser utilizada para acelerar a aquisição de itens urgentes para a população em caso de calamidade — como ocorreu durante a pandemia da Covid-19. Isso porque, no caso do município gaúcho, “processos licitatórios emergenciais, normalmente, levam de 4 a 7 dias úteis para serem efetivados”, como explicou a prefeitura de Canoas.
Por fim, a assessoria do deputado ainda argumentou que o decreto 174, “em seus parágrafos 1° e 2°, entendia-se claramente sobre 'Confiscar as Doações listadas no Anexo'” e que isso teria sido editado. Alegou ainda que “neste caso, acredito que a 'desinformação' estava presente no corpo do texto do próprio decreto, e não do deputado Daniel, que interpretou o que ali dizia”. Como já explicado, em nenhum momento foram usadas as palavras “confisco de doações”. Além disso, requerimento jurídico não é sinônimo de confisco e, sim, expressão jurídica para aquisição emergencial de itens em situações de calamidade.
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Carol Macário
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