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Doações, resgates e alarmismo dominam onda de fakes sobre enchentes no RS
18.05.2024 - 12h15
Rio de Janeiro - RJ
A crescente onda de desinformação sobre as enchentes no Rio Grande do Sul tem se caracterizado por três eixos principais: doações, resgates e alarmismo. Muitas das fakes já checadas até agora também envolvem, em maior ou menor grau, a atuação — ou falta dela — dos governos na crise e a generalização de problemas específicos enfrentados em uma cidade, mas que não necessariamente ocorrem em outra região.
O número de publicações e o engajamento nas redes sociais são um termômetro disso. Um
levantamento feito pela Lupa a partir de dados do CrowdTangle, ferramenta que mapeia posts feitos no Facebook e no Instagram, mostra que, entre 1º e 16 de maio, houve 68.652 postagens com as palavras “doações” ou “resgate” associadas ao termo “Rio Grande do Sul”. No total, esses conteúdos somaram 96,14 milhões de interações nas plataformas.
Dos 46 conteúdos publicados pela Lupa na cobertura até às 15h do dia 16 de maio, 30 são relacionados a doações, resgates ou alarmismo sobre as enchentes no RS (87% do total). O mesmo se percebe em relação ao número de pedidos de checagem feitos à Lupa entre 1º e 12 de maio — considerando os conteúdos que tiveram ao menos 5 pedidos feitos via WhatsApp, 92% tratavam da tragédia do Rio Grande do Sul. 
Para pesquisadores ouvidos pela Lupa, a circulação de desinformação sobre a tragédia climática no Rio Grande do Sul difere dos conteúdos falsos disseminados no contexto eleitoral e tem muito mais influência na opinião pública.
 “Por ser um campo ainda desconhecido, assim como foi durante a pandemia da Covid-19, as informações sobre o assunto, sejam elas verdadeiras ou falsas, têm um impacto maior porque estamos ainda formando opinião sobre o tema”, alerta Nara Pavão, professora de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco (PE). 
Confira a seguir um panorama sobre cada um dos três eixos desinformativos que dominam a onda de desinformação sobre as enchentes no RS:

Doações: da solidariedade às fakes

A grande corrente de solidariedade para ajudar as vítimas das enchentes mobilizou milhares de pessoas no Brasil e ao redor do mundo. Dados do CrowdTangle mostram que, entre 1º e 16 de maio, houve 30.188 posts e 3,5 milhões de interações no Facebook com os termos “doações” e “Rio Grande do Sul”. Já no Instagram, no mesmo período, foram 24.187 publicações e 63 milhões de interações.
As dificuldades logísticas e o apoio ao estado, entretanto, logo impulsionaram mentiras sobre como a ajuda chegaria a quem precisa.
Uma das primeiras fakes que ganhou destaque relacionava o show da cantora Madonna no Rio de Janeiro, em 4 de maio, à suposta falta de apoio do governo federal às vítimas da tragédia no Rio Grande do Sul. Mas, ao contrário do que se divulgou, a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não destinou verba pública para a apresentação.
No mesmo fim de semana do show, começaram crescer nas redes sociais relatos de que caminhões carregados de donativos que se dirigiam ao Rio Grande do Sul só poderiam seguir viagem se tivessem nota fiscal dos itens. Era mentira. As secretarias de Fazenda dos governos de RS e SC negaram haver tal exigência, e o secretário-chefe da Casa Civil gaúcha, Artur Lemos, usou as redes sociais para reiterar que as doações estavam isentas de qualquer cobrança de impostos.
Outra desinformação que se propagou no rastro dessa foi sobre um caminhão multado por excesso de peso em Torres (RS), mas a própria empresa dona do veículo divulgou uma nota de esclarecimento afirmando que não houve autuação. Por outro lado, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) admitiu à Lupa que “houve casos isolados de autuação por excesso de peso”, como no que envolveu um comboio de carretas da Defesa Civil de Santa Catarina. A agência, entretanto, assegurou que as multas foram anuladas e oficializou uma flexibilização de regras e da fiscalização envolvendo veículos com doações. 
A professora Yasmin Curzi, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Rio, chama a atenção para o fato de que conteúdos falsos como esses, incluindo os que sugerem que o governo estaria atrapalhando em vez de gerir a crise, têm um apelo emocional e geram comoção e indignação. “Por isso as pessoas curtem, engajam e compartilham muito mais do que notícias verdadeiras ou que explicam a tragédia”, afirma. 
A desinformação também pôs em xeque a confiança nos governos para recebimento e destinação de doações via PIX, especialmente a campanha liderada pelo governo do Rio Grande do Sul. Uma das razões foi uma manifestação do próprio governador Eduardo Leite (PSDB), em 7 de maio, informando que a conta que recebia os recursos não era do governo, mas sim de uma entidade privada, a Associação dos Bancos no Estado do Rio Grande do Sul.
Trechos dessa fala viralizaram nas redes sociais sem o contexto original e geraram críticas de que a distribuição do dinheiro recebido ficaria a cargo de entidades privadas  “que veriam o que fazer”, ou seja, sem fiscalização. O governo, contudo, esclareceu que um comitê gestor foi criado para mapear e priorizar a divisão dos recursos — e uma das decisões tomadas é de que o repasse dos quase R$ 100 milhões arrecadados (até 14 de maio) começará pelas áreas mais afetadas que já tenham condições de iniciar a recuperação e reconstrução.
“Esse tipo de desinformação está num contexto de pânico e vulnerabilidade extrema da população. Muitas pessoas perderam o acesso à TV e à possibilidade de assistir ao noticiário tradicional e contam apenas com o celular, por onde chega muita informação — muita informação sem qualidade. E aí muitos grupos se aproveitam para promover golpes, ruídos e tumultuar”, pontua Curzi.
A pesquisadora também salienta que, embora a desinformação sobre a tragédia climática seja diferente do contexto eleitoral, há uma semelhança:
“É um ecossistema que se forma dessa maneira, que é constituído assim por causa do sistema de recomendação das plataformas, que dá mais engajamento para aquelas informações que geram indignação ou comoção.”
– Yasmin Curzi, professora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Rio

Resgates: mentiras atacam forças de segurança

O rápido avanço das águas, que causou inundações sem precedentes, gerou comoção e preocupação com os resgates de pessoas. Dados do CrowdTangle mostram que foram publicados 8.646 posts e 1,7 milhões de interações no Facebook, entre 1º e 16 de maio, mencionando os termos “resgate” e “Rio Grande do Sul”. No Instagram, houve 5.631 publicações e 27,7 milhões de interações no mesmo período de análise. 
E, diante da atuação conjunta das forças de segurança e de voluntários, em meio à tentativa de salvar vidas e à falta de informação, a desinformação se proliferou e, muitas vezes, trouxe uma carga extra à tensão.
Uma das narrativas que mais ganhou força envolveu os salvamentos feitos com o uso de motos aquáticas, que teve, pelo menos, três picos. O primeiro foi a suposta exigência, por parte do governo do Rio Grande do Sul, de que civis apresentassem a habilitação para conduzir jet skis para atuar durante os resgates. A mentira foi desmentida pelas autoridades.
O segundo pico focou em uma suposta omissão do Corpo de Bombeiros. O vídeo mostraria a corporação escondendo jet skis na cidade de Nova Santa Rita (RS), em vez de usá-los para salvar vidas. Era falso — parte das motos aquáticas estava sendo levada para outras áreas do estado e o restante seria destinado a substituir jet skis com problemas técnicos.
Outro vídeo fez disparar o terceiro pico de desinformação sobre o assunto. Nas imagens, um suposto bombeiro alega que jet skis não estão sendo usados pela corporação nos resgates porque a água estava suja e com entulhos, o que danificaria as motos aquáticas. Ele ainda cita que há um entendimento que o uso deveria ser somente em águas limpas. Era mentira. O homem é um bombeiro da reserva, e a corporação não só refutou a alegação como compartilhou imagens dos jet skis fazendo resgates nas ruas alagadas.
O resgate aéreo também alimentou a desinformação nas redes sociais. Uma das alegações era de que helicópteros do governo federal deixaram de atuar por não haver teto para voar enquanto aeronaves de civis não pararam. Era falso. Até 4 de maio, as Forças Armadas haviam feito mais de 400 salvamentos com uso das aeronaves.
Outra mentira foi a de que apenas três helicópteros do Exército estavam atuando nos resgates. Ainda ganhou força uma narrativa de que o empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas de departamento Havan, enviou, sozinho, mais helicópteros ao RS do que a Força Aérea Brasileira (FAB). É falso — em 8 de maio, havia pelo menos 17 aeronaves da corporação atuando em diferentes áreas do estado.
Para pesquisadores, esse discurso antiestatal alimentado pelas fakes contra organizações governamentais é conveniente especialmente aos políticos porque promove o ceticismo em relação às instituições. E as plataformas, na percepção de especialistas ouvidos pela Lupa, também têm responsabilidade.
“Enquanto não existir pluralismo midiático e ações diretas das plataformas para informar as populações, o negacionismo, o cinismo e o ceticismo generalizado são um prato cheio para a radicalização.”
– Yasmin Curzi, professora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Rio

Alarmismo estimula medo e recicla falsidades

A inundação de cidades inteiras, com rios em níveis jamais vistos, espalhou medo e impulsionou a difusão de notícias falsas em tom alarmista sobre a tragédia no Rio Grande do Sul. Um dos primeiros conteúdos do tipo a circular foi um vídeo mostrando o gado sendo carregado pela correnteza de um rio, indicando que a força da água era intensa — as imagens, na verdade, eram antigas e não foram gravadas no RS.
Outra história que se espalhou pelas redes sociais foi o áudio de um homem que se identificava como trabalhador da concessionária de energia CPFL afirmando que acompanhou uma reunião dos engenheiros da empresa e descobriu que iria faltar energia elétrica em toda a cidade de Porto Alegre e na Região Metropolitana — e, por isso, a recomendação era a população estocar alimentos. Era falso, como verificou a Lupa.
A partir de 4 de maio, ganharam força relatos de corpos de vítimas humanas que estariam sendo encontrados pelos voluntários que trabalhavam nos resgates. Um deles citava falsamente que 300 corpos haviam sido encontrados em Canoas (RS). A cidade, que foi fortemente atingida pela inundação, também foi mencionada como cenário de um dos temas mais comentados até agora sobre a tragédia: a história do bebê.
O episódio começou a circular em grupos de WhatsApp e nas redes sociais a partir de um áudio em que um homem relata ter encontrado o corpo de um bebê boiando enquanto resgatava três crianças. Até o momento, essa informação não foi confirmada pelas autoridades que coordenam os salvamentos — a Lupa fez um compilado sobre o que se sabe sobre o assunto.
Com o passar dos dias, novas chuvas e nenhuma certeza sobre quando as ruas não estarão mais alagadas, a desinformação alarmista migrou para serviços essenciais à população. Um destes casos envolveu a suposta proibição do envio de medicamentos doados para o RS por ordem da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — o órgão negou que estivesse barrando o transporte.
O abastecimento de água também virou alvo de mentiras. Uma das fakes mais virais que circulou nas redes sociais era uma mensagem afirmando que o lago Guaíba estaria “cheio de corpos e restos cadavéricos” e que, após o retorno do abastecimento, a água estaria imprópria para consumo por pelo menos 15 dias. 
Era falso. Tanto a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) quanto o Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (Dmae) explicaram que toda a água que chega às torneiras da população só é disponibilizada após passar pelo tratamento devido e ser classificada como própria para o consumo.
O alarmismo ainda se espalhou para outros estados atingidos por chuvas no Brasil, como o Maranhão. Uma das fakes que ganhou tração nas redes mostrava imagens de cidades alagadas no estado. O conteúdo, entretanto, era antigo e foi tirado de contexto — os registros foram feitos no município de Tuntum (MA) em abril de 2018.
Para a professora de ciências políticas da UFPE, Nara Pavão, a onda desinformativa e alarmista sobre as enchentes do RS tem semelhanças com o que aconteceu durante a pandemia da Covid-19. “Muitos estudos mostraram como as fakes tiveram efeito, por exemplo, sobre confiança nas vacinas. A doença era uma coisa nova e tivemos que assimilar as informações que chegavam. Agora vivemos um desastre climático, e também será um desafio a assimilação da informação do ponto de vista cognitivo e de opinião”, analisa. 
Segundo ela, os conteúdos desinformativos que têm circulado agora têm a característica de serem negativos, de ataques às instituições, com um apelo emocional muito grande (como o do corpo do bebê, por exemplo) e com tom maniqueísta. “Isso pode, sim, inflamar as pessoas em relação ao tema da emergência climática e aos atores que estão sendo acusados de serem negligentes”, conclui a professora.
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