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‘Me recuso a ser intimidada', diz Maria da Penha sobre ameaças na internet
02.08.2024 - 08h00
Rio de Janeiro - RJ
Em meio a um mar de desinformação e ataques virtuais, Maria da Penha, farmacêutica, que dá nome à principal lei brasileira contra violência doméstica e familiar, enfrenta um novo tipo de agressão: as fake news. Em entrevista à Lupa, a ativista compartilhou como essas mentiras têm impactado sua vida e sua luta pelo combate à violência contra as mulheres
Maria da Penha durante sessão solene para celebrar os dez anos da Lei Maria da Penha. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
Durante a conversa, Maria da Penha relembrou o choque ao descobrir que seu agressor, em vez de ser um assaltante, era seu ex-marido, Marco Antonio Heredia Viveros, que tentou matá-la em maio de 1983. Ela também discutiu as estratégias que considera eficientes para combater essas ameaças online, e enfatizou a necessidade de uma fiscalização e punição rigorosa sobre quem produz e patrocina conteúdos desinformativos.
Penha também afirmou que se sente aliviada pela proteção recebida através do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Ceará, mas destacou que ainda enfrenta o medo de ser atacada por aqueles que se sentem prejudicados ou atacados pela Lei Maria da Penha. "O programa tem me dado segurança, mas a ameaça continua presente", disse.
Sobre a violência contra mulheres, que cresceu no Brasil no último ano, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 revelou um aumento em todas as formas de violência, incluindo crimes virtuais como a divulgação de imagens íntimas e stalking. Para a ativista, esse cenário de crescente hostilidade reforça a necessidade de estratégias eficazes de proteção e combate à violência virtual. Ela também defendeu melhorias na Lei Carolina Dieckmann e na Lei Maria da Penha para que ambas as legislações possam enfrentar de forma mais robusta a invasão de dispositivos e os crimes virtuais contra mulheres.
Para o futuro, Maria da Penha espera que pequenas cidades também disponham de  centros de referência para apoiar as vítimas de violência e que as leis evoluam para prevenir e combater a desinformação e violência contra as mulheres. 
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Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista com a ativista: 
Seu nome é alvo de ataques nas redes sociais devido ao seu caso e julgamento. Como lida com esses ataques e a desinformação?
Na realidade, meu Instituto [Maria da Penha] toma iniciativas nesse sentido. Trabalhamos muito a questão da lei, e eu me sinto amparada pelo movimento de mulheres, no qual o instituto está inserido. Esse movimento está atento a essas questões e ficou muito indignado com as informações falsas, invasões de dispositivos informáticos e disseminação de mentiras de maneira revoltante, como se nosso país fosse sem lei.
Acredito que precisamos de mais esclarecimentos e que os responsáveis por essas fake news sejam rigorosamente punidos. Eles estão indo contra o que foi decidido judicialmente e tentando desconstruir minha história para difamar meu nome. Não sabemos exatamente quem são essas pessoas, mas tenho certeza de que, além de misóginos, há aqueles que foram atingidos pela Lei Maria da Penha e querem se vingar.
A lei precisa ser cumprida, e essas tentativas de vingança não podem prevalecer. É necessário aceitar o que a lei determina e garantir que ela continue protegendo as mulheres vítimas de violência.
– Maria da Penha, farmacêutica e ativista pelo direito das mulheres
Maria da Penha em 1974. Foto: Divulgação/Instituto Maria da Penha.
Você foi recentemente incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Ceará. Como essa proteção pode ajudar na sua segurança?
[O programa] tem me dado muita segurança. Eu estava desde mais ou menos 2022 sem sair de casa.  Eu tinha medo de alguém me ver na rua, me ver no shopping, e se insurgir contra mim dizendo “eu fui preso pela lei que tem o seu nome”. 
Eu tive duas experiências [na quais me senti ameaçada]. Uma delas eu estava numa agência bancária e enquanto uma amiga foi pegar o carro entraram dois homens no banco. Um deles chegou para mim e disse “você é Maria da Penha?”. Respondi que sim. Ele esticou a mão para mim e disse “muito prazer, eu sou um ex agressor”. 
Se ele quisesse fazer alguma coisa comigo ali, ele tinha feito, ele podia ser pego, mas ele poderia ter feito. Eu olhei para ele e estiquei a mão e disse “meus parabéns que você hoje é um ex- agressor”. Foi a minha saída, mas que eu tive medo eu tive. 
Quer dizer, eu posso estar em um espaço público e ter uma pessoa ali que se sentiu prejudicada pela lei, foi presa, saiu de casa, essa pessoa pode fazer qualquer coisa comigo. Então, eu agradeço muito a situação que eu tô vivendo agora, estou me sentindo protegida. 
O discurso de ódio nas redes sociais contra as mulheres tem potencial para minar a luta pelos direitos delas. Você acredita que isso pode acontecer?
Acredito que sim. O discurso [de ódio nas redes sociais] contra as mulheres tem potencial para minar a luta pelos direitos das mulheres, se não tivéssemos hoje um grande número de militantes feministas e alguns homens também na preservação desta causa. Essas pessoas ajudam a garantir que a lei cumpra seu papel de proteger as mulheres vítimas de violência.
Hoje em dia, há muito conteúdo de ódio, misoginia, perseguição, assédio sexual e a publicação de fotos e vídeos íntimos, muitas vezes sem o consentimento da vítima. Esse tipo de violência tem um alcance muito grande e uma disseminação rápida, o que dificulta ainda mais a luta pelos direitos das mulheres. Até que se prove que uma notícia que está circulando é falsa, criada por machistas e agressores, o dano emocional já foi enorme para essas mulheres. 
A violência virtual abrange um número infinitamente maior de pessoas que não têm conhecimento da minha história real e acreditam na [falsa] história virtual. Eu entendo que houve uma grande repercussão sobre os conteúdos de ódio que foram disseminados contra mim e hoje me fazem participar do Programa de Proteção a Defensores dos Direitos Humanos.
Eu me recuso a ser intimidada, a minha história de vida e a minha luta são marcadas pela coragem, pela resiliência e muita persistência.
– Maria da Penha, farmacêutica e ativista pelo direito das mulheres
Afinal, foram 19 anos e seis meses de luta para o meu agressor ser preso e se o estado do Ceará me oferece essa possibilidade de proteção para trazer mais tranquilidade aos meus dias, eu aceito isso e sou muito grata.
Mandado de prisão de Marco Antonio Heredia Viveros, em outubro de 2002. Foto: Reprodução/Folha S. Paulo.
Você já foi alvo de fake news que tentaram desacreditar a sua história, como a alegação de que você ficou paraplégica após sofrer uma tentativa de assalto. Como isso afeta você pessoalmente e o seu trabalho na defesa dos direitos das mulheres?
Isso realmente foi um choque para mim. Meu processo foi muito longo e detalhado. Foram 19 anos e seis meses até que meu agressor fosse preso. Inicialmente, espalharam a história de que houve um assalto na minha casa enquanto eu estava hospitalizada. Passei quatro meses no hospital, e a Secretaria de Segurança descobriu que não foi um assalto, mas sim uma simulação.
Voltei para a casa dos meus pais no final de 1983. No início do ano seguinte, a polícia me localizou, pois eu era a única testemunha que faltava ser ouvida. O delegado do caso me disse: "Lamento informar, mas você não foi vítima de um assalto, foi uma tentativa de homicídio pelo seu marido." Naquele momento, chorei, pois até então acreditava na versão dele.
Edição Diário do Nordeste 19/06/1984. Foto: Reprodução/Diário do Nordeste.
O inquérito começou, e as testemunhas foram ouvidas. Isso tudo aconteceu quase dez anos depois. Eu comecei a entender que muitos comportamentos e evidências indicavam que o crime foi premeditado. Por exemplo, quando saí de casa após a segunda tentativa de homicídio e fui mantida em cárcere privado, encontrei muitos documentos no escritório dele, incluindo inúmeras cópias autenticadas das minhas identidades.
Descobri que ele tinha uma amante, mas o que mais me abalou foram os documentos que encontrei. O processo levou todo esse tempo até o primeiro julgamento, onde ele foi condenado por seis votos a um no tribunal do júri. No entanto, os advogados dele solicitaram a anulação do julgamento, alegando que havia sido contra a prova dos autos.
O primeiro julgamento de Marco aconteceu 8 anos após o crime, em 1991. Em 1996, ocorreu o segundo julgamento. Em ambos, ele saiu do fórum em liberdade. Foto: Divulgação/ Instituto Maria da Penha.
Foi um momento muito difícil, pois esperávamos que ele fosse preso imediatamente. Perguntei ao movimento de mulheres, que sempre apoiou minha causa, se isso poderia acontecer novamente. Eles me disseram: "Não se iluda, Penha. Tudo pode acontecer, pois há muito machismo no judiciário."
Diante dessa frustração, resolvi escrever um livro e incluir parte do processo, onde as contradições dele são bem evidentes.
Maria da Penha e o livro “Sobrevivi… posso contar”. Foto: Reprodução/TJMT.
Como você percebe a violência virtual contra mulheres e quais são as formas de proteção?
A Lei Carolina Dieckmann inseriu no Código Penal o crime de invasão de dispositivo informático, como celulares, notebooks e tablets. Além disso, a própria Lei Maria da Penha dispõe de medidas protetivas que impedem o agressor de contatar a vítima, seus familiares ou testemunhas por qualquer meio de comunicação. Por isso, é importante que a denúncia seja estimulada, embora saibamos que há uma dificuldade para denunciar, principalmente devido aos impactos psicológicos causados à saúde da mulher. Precisamos de uma "inteligência para o bem" que interfira nessa inteligência que machuca as mulheres e que utiliza a internet para divulgar e propagar fake news em relação a elas. 
Como as mulheres podem enfrentar e denunciar casos de violência? 
O que a Lei Maria da Penha determina para ajudar a vítima é a criação das casas abrigos, a criação do centro de referência da mulher, e as varas específicas para cuidar dos casos de mulheres, além da questão educacional. No entanto, essas políticas geralmente estão presentes somente nas grandes cidades.
O que nós do Instituto Maria da Penha desejamos é que todo pequeno município, por menor que seja, tenha um centro de referência da mulher dentro de uma unidade de saúde. Esse é o local ideal porque é lá que a mulher vai cuidar da sua saúde física e mental. A vítima vai conversar com uma equipe especializada e contar a sua situação. Muitas vezes, ela nem sabe que está vivendo violência.
Gráfico sobre ciclo de violência contra mulher. Fonte: Instituto Maria da Penha.
O centro de referência tem a obrigação de orientar essa mulher a sair daquela situação, porque se ela não sair ela pode vir a ser assassinada.
Então é importante, imprescindível e necessário que os pequenos municípios cuidem das suas mulheres, implantando um centro de referência da mulher.
– Maria da Penha, farmacêutica e ativista pelo direito das mulheres
Acredita que as leis brasileiras são adequadas para lidar com a violência virtual contra as mulheres?
Não, acho que precisam ser melhoradas. As redes sociais chegaram para nos ensinar coisas boas, mais informações, mais conhecimentos, mas que agora estão sendo utilizadas para situações não condizentes com a sociedade, não condizente com o que se deseja da tecnologia.
Acho que a preocupação já existe por parte do governo porque nas últimas eleições houve o aumento dessas fake news, no final do governo anterior para esse governo atual. As fake news realmente chegavam a perturbar pessoas que não tinham um maior acesso a vários tipos de mídias. 
Então acho que a imprensa e as [plataformas de] mídias têm um grande papel no combate às fake news e eu tenho a impressão que em breve esse tipo de desinformação terá sua origem facilmente detectada. Esses tipos de agressores serão punidos. Eu não sou dessa área, mas [acredito] que imediatamente essas informações serão retiradas do ar.
Como as ameaças e a violência virtual que você sofreu impactaram a sua capacidade de continuar a lutar pelo direito das mulheres? Você acredita que isso te afetou e a impediu de alguma forma?
Não, muito pelo contrário, mais e mais pessoas se achegarem a mim, eu tenho mais pessoas que nos ajudam, nos fortalecem, criam condições para gente avançar nessa guerra contra essas fake news, pessoas que eu nem conhecia. Então, nesse aspecto da luta, também não estou desamparada.
Maria da Penha. Foto: Jarbas Oliveira/Folhapress.
Quais são suas esperanças para o futuro da luta contra a violência doméstica e virtual?
A gente quer que isso não aconteça mais, que as pessoas que alimentam esse tipo de cultura violenta virtual, antes de fazer o mal, sejam analisadas por quem patrocina isso. Tem que haver um trabalho de fiscalização, como existe em tudo. Por exemplo, se uma pessoa declara Imposto de Renda e falsifica aquele documento, quando as contas são analisadas pela Receita Federal não se descobre a fraude? Descobre. Por que não existe uma maneira daquele conteúdo falso que vai ser lançado na mídia ser previamente analisado por quem de direito? Para saber se o que está sendo publicado é realmente fake news ou um conteúdo verídico. 
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