UOL - O melhor conteúdo
Lupa
Autores do PL do Aborto usaram desinformação para defender projeto
O Projeto de Lei nº 1904/2024, que equipara a pena do aborto realizado após 22 semanas de gestação à de um homicídio simples, voltará à discussão na Câmara dos Deputados neste segundo semestre. Em defesa da polêmica proposta, alguns parlamentares têm disseminado em suas redes sociais conteúdos enganosos ou fora de contexto, principalmente, com ataques às mulheres. 
Levantamento realizado pela Lupa, utilizando as ferramentas LupaScan e El Periscopio, identificou ao menos oito publicações, de cinco deputados que assinam o projeto, com conteúdo desinformativo e fatos distorcidos sobre o aborto. Muitas das publicações, amplamente divulgadas no primeiro semestre deste ano, propagam inverdades como a de que a indústria utiliza fetos humanos na produção de cosméticos ou a de que o governo federal liberou o aborto em qualquer tempo gestacional para casos previstos em lei -  nos casos de risco à vida, violência sexual ou anencefalia. 
Além disso, os parlamentares minimizaram o fato de a pena prevista no PL 1904 para a mulher que optar pelo aborto legal depois das 22 semanas de gestação ser maior do que a do estuprador. O PL do Aborto prevê uma pena que pode chegar a até 20 anos de prisão tanto para gestantes quanto para quem realiza o procedimento após 22 semanas de gestação, pois equipara a punição à do crime de homicídio simples (artigo 121 do Código Penal). Essa penalidade é, de fato, maior do que a prevista para o crime de estupro, cuja pena, segundo o artigo 213 do Código Penal, é de seis a dez anos de prisão.
Legenda: Publicação de deputada Franciane Bayer (Republicanos-RS) em defesa do PL do Aborto. Foto: Reprodução/redes sociais
Em junho, deputados federais aprovaram o regime de urgência  para a tramitação do projeto, o que gerou grande mobilização contrária à proposta. Diante da pressão, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que o projeto seria retomado para discussão neste semestre e que poderia ser debatido por uma comissão representativa. Em 19 de julho, Lira reforçou que o assunto será alvo de inúmeras discussões.
“Para não se impor uma visão que às vezes não é correta, se recuou, se colocou e se colocará uma relatora mulher equilibrada, nem de um lado nem de outro, com várias discussões, audiências públicas, seminários, congressos, conduzidos pela bancada feminina a respeito da assistolia, não do que nós temos de legislação para aborto, porque isso não passa no Congresso”, afirmou Lira
O projeto foi apresentado pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), em 17 de maio, e, atualmente, constam na lista de autores outros 53 parlamentares
Confira, a seguir, as principais publicações desinformativas identificadas pela Lupa:

Produção de cosméticos

O deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) publicou, em junho deste ano, que a indústria utiliza fetos humanos na produção de cosméticos. A Lupa comprovou que a informação é falsa, já que o parlamentar baseou seu argumento em publicações antigas e inverídicas. 
Sóstenes Cavalcante citou, por exemplo, um texto publicado na Folha de S.Paulo em 2008 sobre o livro Babies for Burning de 1974, que afirmava que a entidade filantrópica British Pregnancy Advisory Service, do Reino Unido, vendia fetos humanos para fábricas de cosméticos. No entanto, o parlamentar omite que o conteúdo do livro foi desmentido ainda na década de 1970. Os próprios autores pediram desculpas pelo ocorrido e, em 1978, retiraram as alegações feitas no livro em um tribunal, conforme documentado pelo banco de dados britânico Wellcome Collection.
As outras duas publicações usadas pelo parlamentar são notícias de 2015 dos veículos  O Globo e BBC. Ambas referem-se a uma denúncia realizada pelo grupo antiaborto Center for Medical Progress contra a organização não-governamental (ONG) norte-americana de direitos reprodutivos Planned Parenthood, alegando que a entidade lucrava com a venda de tecido fetal. A acusação, contudo, também foi desmentida anos atrás, explica a plataforma de checagem norte-americana FactCheck.org. Além disso, as acusações não foram comprovadas e o grupo antiaborto foi condenado a pagar indenização à ONG.

Aborto liberado

Em 29 de fevereiro, o deputado federal Evair Vieira de Melo (PP-ES) publicou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) havia liberado o aborto em qualquer tempo gestacional para os casos previstos em lei. No mesmo dia, os deputados Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP) e Capitão Alden (PL-BA) também postaram que o governo petista havia autorizado o aborto em caso de estupro até nove meses de gestação. As afirmações são falsas.
O aborto é crime no Brasil desde o Código Penal de 1940, com três exceções previstas: quando há risco a vida da gestante, quando a gravidez é resultado de estrupro, e em caso de anencefalia fetal. 
Os deputados distorceram uma nota técnica publicada pelo Ministério da Saúde, que derrubava uma orientação do governo Bolsonaro de 2022. A orientação anterior recomendava o prazo de até 21 semanas e 6 dias de gestação para que fosse feito o aborto legal. Com a revogação, passou a valer o texto do Código Penal, que não impõe um prazo específico. Contudo, após repercussão negativa, a pasta suspendeu a nota técnica.

Abortos na Islândia

A deputada federal Francine Bayer (Republicanos-RS) publicou, em 14 de janeiro, que a Islândia aborta 100% dos bebês diagnosticados com síndrome de Down. A informação tem circulado desde agosto de 2017, quando a CBS publicou uma reportagem relatando que a "grande maioria das mulheres - cerca de 100% - que receberam um teste positivo para Síndrome de Down interromperam a gravidez" na Islândia. A mesma reportagem mencionava que, “com uma população de cerca de 330.000, a Islândia tem, em média, apenas uma ou duas crianças nascidas com síndrome de Down por ano”.
No entanto, tal informação é falsa e já foi desmentida por jornais como El País e Polígrafo. Em 2018, o Ministério do Bem-Estar da Islândia divulgou uma nota explicando que no país as mulheres em pré-natal têm a possibilidade de realizar a triagem para distúrbios cromossômicos, como a síndrome de Down, o que é feito por cerca de 80% a 85% das grávidas.
“O rastreio apenas revela se há uma probabilidade aumentada de o feto ter síndrome de Down, e são necessários mais testes para confirmar isso. Cerca de 15-20% das mulheres que são informadas sobre a probabilidade aumentada de síndrome de Down após o rastreio optam por continuar a gravidez e recusam mais testes a esse respeito. Em média, durante os últimos dez anos, 2-3 crianças nasceram a cada ano com síndrome de Down na Islândia”, diz em nota o Ministério do Bem-Estar da Islândia.

Aborto legal

Em 17 de maio, o deputado federal Capital Alden (PL-BA) postou que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), havia derrubado uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que restringe aborto legal acima de 22 semanas. Falta contexto.
A decisão de Moraes, que acatou ação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), está sendo submetida a referendo pelo STF em sessão virtual. O placar está empatado em 1 a 1. O ministro André Mendonça divergiu da decisão de Alexandre de Moraes, entendendo que o CFM tem atribuição legal para emitir a resolução. O julgamento foi suspenso por causa de um pedido de destaque do ministro Kassio Nunes Marques, para que a ação seja discutida em plenário pelo STF. Não há previsão de retorno. 
A resolução do CFM foi bastante criticada por entidades ligadas à defesa dos direitos reprodutivos, como a  Rede Médica pelo Direito de Decidir. "A resolução é ultrajante sobretudo porque tenta justificar a proibição nos tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário", diz. "Muitas vezes, as crianças e mulheres chegam aos serviços de saúde para um aborto legal após as 20 semanas de gravidez por enfrentarem atrasos logísticos e recusas de cuidado antiéticas e propositais que visam postergar o procedimento até os limites infralegais impostos nos serviços de saúde", reforça ainda a nota. 
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também publicou moção de repúdio contra a decisão do CFM.  Vale ressaltar que a assistolia fetal consta em norma publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que recomenda que essa técnica seja usada em idades gestacionais acima de 20 semanas.
O professor Jefferson Drezett, da Faculdade de Saúde Pública da USP, em entrevista recente à Lupa, explicou que, do ponto de vista clínico, é preciso definir condutas em diferentes idades gestacionais. Ele lembra que o atendimento de um aborto com 8 semanas é completamente diferente de um atendimento de um aborto com 22 semanas, por exemplo. O processo mais comum é o uso de medicamentos, mas, dependendo da idade gestacional, são recomendados outros tipos de técnicas. 
A partir de determinada idade gestacional, avalia-se a necessidade ou a possibilidade de se realizar a assistolia fetal. O caso é analisado por meio de uma ultrassonografia e, em seguida, se avalia o procedimento, que pode ser realizado de duas formas: pelo cordão umbilical ou intracardíaca (dentro do coração), onde é injetada a medicação na circulação fetal, e essa solução tem o cloreto de potássio. "Ou seja, antes de começar esse processo de indução com medicamentos, para que a gestação seja expulsa de dentro do útero, se procederia com a indução do óbito fetal, que vai ser chamado de assistolia fetal", explica Drezett.

Novo Código Civil

O deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP), em 27 de fevereiro, publicou que uma comissão de juristas do Senado estava apresentando um novo Código Civil que legalizaria a morte de "criancinhas no ventre da mãe". Em 6 de março, o deputado Luiz Ovando (PP-MS) afirmou que a proposta, se aprovada, iria alterar "conceitos essenciais", abordando demandas da esquerda sobre aborto. Falta contexto.
Em fevereiro, uma petição online insinuou que o novo código seria um “ataque aos valores mais nobres” e pediu que algumas alterações propostas fossem revistas, entre elas a que define o embrião como "potencialidade de vida humana pré-uterina ou uterina". Para estudiosos, essa especulação é infundada porque a atualização "alarga a proteção ao nascituro, prevendo, inclusive, a necessidade de intervenção do Ministério Público nos procedimentos extrajudiciais”.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou ao site da Agência Senado que não há nenhum tipo de perspectiva de radicalização ideológica na atualização do Código Civil. "Todos esses temas, independente de como venham da Comissão de Juristas, obviamente, terão aqui um amplo debate com a sociedade e uma decisão que será do Parlamento, com as suas próprias características do Parlamento, em relação a essas decisões. Mas, isso não desmerece o trabalho da Comissão de Juristas, que de fato contribui, pela experiência que cada um tem ali". 
O novo Código ainda não está em vigor e terá pela frente ainda um longo caminho de debates no Congresso até ser de fato aprovado. 

Outro lado

A Lupa contatou os parlamentares citados nesta matéria, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado no caso de resposta dos deputados.

Todos os conteúdos da Lupa são gratuitos, mas precisamos da sua ajuda para seguir dessa forma. Clique aqui para fazer parte do Contexto e apoiar o nosso trabalho contra a desinformação

LEIA TAMBÉM
Clique aqui para ver como a Lupa faz suas checagens e acessar a política de transparência
A Lupa faz parte do
The trust project
International Fact-Checking Network
A Agência Lupa é membro verificado da International Fact-checking Network (IFCN). Cumpre os cinco princípios éticos estabelecidos pela rede de checadores e passa por auditorias independentes todos os anos.
A Lupa está infringindo esse código? FALE COM A IFCN
Tipo de Conteúdo: Reportagem
Conteúdo investigativo que aborda temas diversos relacionados a desinformação com o objetivo de manter os leitores informados.
Copyright Lupa. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.

Leia também


04.10.2024 - 15h20
Eleições 2024
Último debate em São Paulo: ataques e argumentos repetidos marcam a noite

Pela última vez Ricardo Nunes, Guilherme Boulos, Pablo Marçal, Tabata Amaral  e José Luiz Datena estiveram lado a lado debatendo propostas ao vivo. O debate da TV Globo, na quinta-feira (3), fechou a série de encontros entre candidatos no primeiro turno sem muitas novidades, mas com acusações e declarações repetidas — algumas erradas.

Luciana Corrêa
04.10.2024 - 15h20
Eleições 2024
Último debate no Rio de Janeiro: ataques a Paes e corrupção no foco

A corrupção foi um dos temas centrais discutidos pelos candidatos no Rio de Janeiro, no debate promovido pela TV Globo. E o fogo cruzado atingiu vários candidatos em trocas de acusações nem sempre 100% precisas. Alexandre Ramagem, Eduardo Paes, Marcelo Queiroz, Rodrigo Amorim e Tarcísio Motta se enfrentaram no último encontro antes do 1º turno.

Ítalo Rômany
04.10.2024 - 15h19
Eleições 2024
Último debate em Porto Alegre: candidatos apostam em ataques e dados sobre enchente

No último debate antes do primeiro turno, os candidatos à prefeitura de Porto Alegre centraram suas discussões nas enchentes e alagamentos que afetaram a cidade em maio. O encontro também foi marcado por embates entre Maria do Rosário (PT) e Sebastião Melo, enquanto Juliana Brizola (PDT) reclamou de ter sido isolada devido à polarização.

João Pedro Capobianco
03.10.2024 - 15h00
Último debate
Rio de Janeiro: erros e acerto dos candidatos à prefeitura no 1º turno

Veja o que a Lupa já checou sobre os candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro Alexandre Ramagem (PL), Eduardo Paes (PSD), Marcelo Queiroz (PP), Rodrigo Amorim (União) e Tarcísio Motta (PSOL), no 1° turno da campanha.

Gabriela Soares
03.10.2024 - 15h00
Último debate
Porto Alegre: confira os erros e acertos dos candidatos à prefeitura no 1º turno

O último debate dos candidatos a prefeito de Porto Alegre, no primeiro turno das eleições de 2024, será realizado nesta quinta-feira (3), a partir das 22h, na RBS TV. Estarão presentes Juliana Brizola (PDT), Maria do Rosário (PT) e Sebastião Melo (MDB). Confira tudo o que a Lupa já checou sobre o trio nesta campanha.

Maiquel Rosauro
Lupa © 2024 Todos os direitos reservados
Feito por
Dex01
Meza Digital