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Lupa
Afirmação de que 97% dos registros de violência doméstica são falsos não se sustenta
03.09.2024 - 09h00
Rio de Janeiro - RJ
Circula nas redes sociais um vídeo alegando que 97% dos registros de violência contra a mulher seriam de denúncias falsas. Trata-se de uma afirmação insustentável. 
Por WhatsApp, leitores sugeriram que o conteúdo fosse analisado. Confira a seguir o trabalho de verificação da Lupa​: 
“Muitas mulheres acabaram pegando a Lei Maria da Penha porque elas sabem que elas chegando na delegacia, sem precisar provar nada, elas conseguem uma medida protetiva [...] Falsas acusações [são] em torno de quase 97% de todos os registros de boletins de ocorrências que foram registrados”

– Transcrição de trecho do vídeo que circula nas redes sociais
Insustentável
Não há levantamentos oficiais que mostrem, conforme apontou a mulher do vídeo, que 97% dos registros de violência contra a mulher são de falsas acusações. A Lupa contatou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ambas as entidades afirmaram que desconhecem o número citado na gravação e que não possuem um estudo sobre falsas acusações.
“Não temos esse tipo de levantamento e acredito que nenhum órgão tenha”, disse o CNJ, em nota. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que possui pesquisas que levantam dados sobre violência contra a mulher, também disse que não possui nenhum trabalho sobre falsas acusações. 
“Os pesquisadores desconhecem qualquer tipo de estudo sobre falsas acusações. Segundo eles, o entendimento é exatamente o contrário: os crimes no Brasil, na verdade, são subnotificados”, disse a entidade, em comunicado
Para compreender melhor o tema, a Lupa também contatou o juiz e professor universitário na Universidade Federal de Alagoas, Wlademir Paes de Lira. Segundo ele, a declaração expressa no vídeo não tem sustentação científica e é mera especulação. “É uma narrativa sem qualquer comprovação estatística e sem nenhuma segurança científica”, disse, por telefone. 
Assim como pontuou o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Lira também entende que existe uma subnotificação de casos. “Existe uma quantidade muito maior de violências sofridas pelas mulheres que não são comunicadas. É uma subnotificação ainda grande e nós não estamos falando só em agressão física, que é a mais evidente, mas também em violência psicológica, patrimonial e por aí vai”, afirmou. 

Dados sobre violência contra mulher

A Lupa contatou a mulher que aparece no vídeo para poder compreender a fonte dos dados afirmados na gravação. A advogada Jamily Wenceslau retornou, por e-mail, e sugeriu que fossem assistidos outros dois vídeos publicados por ela para que se pudesse entender a origem dos números ditos – ambas as gravações foram transmitidas ao vivo em 2020. 
Ainda por e-mail, ela disse que na live que contou com a presença de Marcos Vinícius Jardim Rodrigues – na época, conselheiro do CNJ – foi expresso que “em caso de arquivamento do IPL [inquério policial] ou absolvição do homem estaríamos a tratar de uma falsa acusação”. No entanto, acompanhando a transmissão, nota-se que o conselheiro não diz em momento algum que quando um inquérito é arquivado isso mostraria que todo o caso foi uma falsa acusação. 
A Lupa procurou o ex-conselheiro do CNJ, que também já foi presidente da seção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Acre, para que ele pudesse expor mais detalhes sobre o que foi dito. Marcos Vinícius negou que tenha afirmado que o excludente dos casos que não vão para a execução penal trata-se de denúncias falsas. “A minha fala não é no sentido dessa afirmação. Inclusive, faço uma explanação até bem enfática sobre os gravosos números de violência doméstica no Brasil”, disse.
“Na live, eu tomo cuidado a respeito disso e falo que, na realidade, os números concretos não correspondem a essa informação e digo que o CNJ tem promovido políticas públicas em defesa da mulher, em combate à violência doméstica, no sentido contrário do que foi afirmado. O CNJ não tem esses dados que foram ditos por ela”, afirmou o ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, por telefone.
No outro vídeo indicado pela advogada por e-mail, ela mostra dados do documento "O Poder Judiciário na aplicação da lei Maria da Penha", divulgado pelo CNJ em 2018 e que traz informações relativas ao ano anterior. Na transmissão, ela lê alguns números do relatório, afirmando que “em 2017 ingressaram nos Tribunais de Justiça estaduais do país 452.988 casos novos de conhecimento criminais em violência doméstica contra a mulher” (páginas 12 e 13)”. Ela também diz que, desses casos, 236.641 resultaram em medidas protetivas (página 11), mas que apenas “foram iniciados na Justiça Estadual um total de 14.280 processos de execução penal em violência doméstica contra a mulher”. Pensando na porcentagem de casos que seguiram para medidas penais em relação às denúncias, nota-se que apenas cerca de 3% dos registros têm como resultado execução penal para o agressor. No entanto, mesmo que se tomasse o restante, 97%, como denúncias falsas, ainda se estaria fazendo uma análise sem levar em consideração o contexto de cada caso, que não é revelado. Além disso, se 97% das denúncias fossem comprovadas como inverídicas, cada mulher responderia pelo crime de denúncia falsa. 

Denunciação caluniosa é crime

O ato de iniciar algum tipo de procedimento investigativo atribuindo algum crime a um inocente é classificado como crime de denunciação caluniosa pelo artigo 339 do Código Penal. A pena prevê reclusão de dois a oito anos, além de multa.
No vídeo em que dados do relatório de 2018 do CNJ são apresentados, a advogada afirma: “O Brasil está dizendo que 452 mil casos são de violência doméstica. E não é, não é”, sugerindo que, como os casos não tiveram prosseguimento na Justiça, eles seriam de denúncias falsas. No entanto, essa é uma análise incorreta, como aponta Lira: “A diferença entre a quantidade de boletins e condenações não significa dizer que boa parte de denúncias são falsas”.
A Lupa também contatou a advogada Bruna Sillos, especialista em Direito da Família, que representa vítimas de violência doméstica nas delegacias. Ela afirma que existem diversas etapas para que um caso seja registrado e que, portanto, não seria fácil encaminhar uma denúncia falsa.
“Muitas vezes a gente tem dificuldade para registrar. A delegacia já é totalmente resistente na hora do registro, não são todas, claro”, disse. “Não é fácil registrar uma ocorrência. Muitas vezes não há o acolhimento devido. As mulheres encontram muitos entraves para fazer esse registro”.  

Mulheres enfrentam dificuldade desde o momento da denúncia 

Reportagens feitas pelo O Globo e AzMina mostram que existem dificuldades no acolhimento das vítimas nas delegacias, mesmo naquelas que são especializadas em atendimento à violência contra a mulher. A matéria publicada pelo Globo em 2021 entrevistou a fundadora da primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher e hoje vice-presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina, a Delegada Rose, que disse que ainda existe despreparo dos agentes, o que dificulta o registro da denúncia.
Além disso, na reportagem publicada pela AzMina em 2020, existe o depoimento de uma vítima que afirmou que teve atendimento dificultado na delegacia e disse que os policiais se recusaram a atendê-la, sem explicações. A advogada Ana Paula Freitas, ouvida na matéria, disse: “O atendimento das delegacias precisa melhorar e muito. Já atendi mulheres que por pouco não sofreram feminicídio, e o policial falava: ‘Se você denunciar vamos ter que prender ele em flagrante, e aí quem vai sustentar as crianças? Quem vai sustentar você?”, contou.
O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano, apontou para o crescimento de casos em todos os tipos de violência contra mulheres no Brasil em 2023. Nos números absolutos apresentados no documento, nota-se que as ameaças foram o tipo de violência mais comum, com 778.921 casos no ano passado. Em 2022, foram  668.355.

Entraves impedem que denúncias cheguem à execução penal

Segundo Lira e Bruna Sillos, existem diversas razões para que, no relatório do CNJ, que analisa o período de um ano, denúncias não tenham prosseguido em até 12 meses para a execução penal:
1 - Medida protetiva foi suficiente
O juiz e a advogada consultados analisam que, em alguns casos, a medida protetiva solicitada durante a denúncia já pode ser suficiente e por isso se deixa de prosseguir com a execução penal. 
“Muitas vezes acontece que as medidas protetivas por si só surtem efeitos e depois não se existe mais necessidade de se fazer uma condenação penal”, aponta o juiz. “Existem casos em que ocorre um acordo no meio do caminho, por exemplo”, afirmou a especialista em Direito de Família
2 - Arrependimento da mulher por dependência emocional ou financeira
“Você pode ter a diferença entre os boletins de ocorrência e as condenações, mas não significa dizer que não houve violência doméstica. Muitas vezes, a própria vítima se arrepende porque ele é o pai dos filhos dela”, afirma Lira.
Muitas vezes, embora o processo possa seguir sem o consentimento dela, ela muitas vezes dificulta por causa da questão da dependência, questão da própria vulnerabilidade da mulher”, observa o juiz de Direito.
3 - Demora na resolução do processo 
Além disso, segundo destaca a advogada, os dados levantados pelo relatório de 2018 são amostras do ano e, no entanto, um processo pode demorar mais do que doze meses para ser concluído e para que o réu seja condenado. Podem ser encontrados problemas como dificuldades para encontrar o endereço do agressor, por exemplo, ou outras questões burocráticas. 
“Um processo pode demorar muitos anos. Do boletim à execução penal, você pode ter um período muito longo. O prazo pode chegar em 10 anos. Então, dependendo da situação, o prazo também varia muito. Não dá pra falar que um B.O. vai virar em pouco tempo uma execução. Ele pode virar em muitos anos uma execução”, disse a advogada Bruna Sillos.
4 - Juiz desconsiderar as provas 
“Ou, até mesmo, as provas podem ser consideradas escassas para os juízes e, por isso, o caso é arquivado”, afirmou Bruna Sillos. Isso ocorre porque no direito penal o princípio de “in dubio pro reo”, em que se no processo penal existem dúvidas em vista da quantidade das provas apresentadas, a interpretação do juiz acaba sendo em favor do acusado.

Números insustentáveis invisibilizam violência 

Wlademir Paes de Lira é autor do artigo “O perigo das supostas ‘estatísticas’ sobre falsas denúncias de violência doméstica contra a mulher”, que destaca como as acusações de que a maior parte dos boletins são falsos enfraquece a luta contra a violência e indica que denúncias falsas não seriam punidas criminalmente. 
“Essas informações incompletas são perigosas, pois podem levar uma mensagem falsa para a sociedade, de que tudo que se fala acerca da violência doméstica contra a mulher é exagero, que a maioria das denúncias é falsa, e que a mulher que presta denúncia falsa não sofre qualquer consequência”, aponta no artigo. 
“A preocupação das pessoas que trabalham com esse tema é de que esse tipo de depoimento somente partindo de uma mulher não venha desacreditar as denúncias e desestimular que as mulheres tomem a iniciativa de denunciar”, falou o especialista, sobre o vídeo com afirmações insustentáveis. 

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