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Aborto legal: o que é fato e o que é mito segundo a ciência e a lei
O aborto legal, permitido em lei no Brasil em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia, é ecomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) inclusive como prevenção da mortalidade materna. Embora existam evidências científicas de que o procedimento de saúde é seguro quando feito de maneira legal e por profissionais capacitados, conteúdos falsos e distorcidos circulam amplamente pelas redes sociais. 
Em junho, a aprovação do regime de urgência pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 1904/24, conhecido como PL do Aborto ou PL do Estuprador, ampliou a disseminação de desinformação sobre o assunto. A proposta equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio, incluindo casos de estupro quando o procedimento é legal. O texto segue tramitando na Câmara e aguarda despacho do presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL). Mitos sobre a interrupção da gravidez, mesmo nos casos legalizados, passaram a ser disseminados não apenas por movimentos contrários à prática, mas também por políticos conservadores e de extrema-direita
Uma parceria entre a Lupa e o Portal Catarinas analisou os conteúdos mais comuns que circulam pelas redes e que são também disseminados em narrativas supostamente “pró-vida”. 
Veja, a seguir, as respostas da ciência e da legislação no Brasil e no mundo para os principais mitos e dúvidas sobre o aborto:

SAÚDE

1. O aborto causa câncer
Falso
Embora existam várias pesquisas sobre uma possível relação entre o aborto e câncer, até o momento não há comprovação científica de que a interrupção da gravidez, induzida ou espontânea, aumente o risco de desenvolvimento da doença.
Em 2020, uma revisão sistemática de estudos sobre a relação entre aborto e risco de câncer da mama publicados até 2018 mostrou que as pessoas que abortaram não apresentavam um risco aumentado da doença. A análise, cujo resultado foi publicado pela revista científica Medicine, incluiu um total de 14 pesquisas, sendo seis estudos de corte e oito estudos de caso controlados.
Um outro estudo mais recente, publicado em 2023 pelo periódico científico International Journal of Environmental Research and Public Health, investigou os riscos de câncer entre mulheres de 20 a 45 anos que realizaram aborto em comparação com aquelas que não passaram por esse procedimento. A pesquisa acompanhou essas mulheres por  10 anos em Taiwan.
Os pesquisadores encontraram menor risco de câncer uterino e ovariano no grupo que passou por um aborto. Eles não identificaram nenhuma diferença significativa no risco de câncer de mama ou de câncer cervical entre os dois grupos. Já para o câncer de colo do útero, o risco foi maior no grupo de mulheres que abortou. Nesse último caso, os estudiosos observaram que o risco foi menor nas mulheres que nunca pariram. Diante disso, a pesquisa recomendou a necessidade de acompanhamentos mais longos para se chegar a resultados conclusivos.
2. O aborto é um procedimento inseguro para as pessoas gestantes
Falso
A Organização Mundial da Saúde (OMS) descreve o aborto como uma intervenção comum e segura. Inclusive, o procedimento é considerado mais seguro do que o parto, tornando-se inseguro apenas quando realizado sem informações adequadas, sem medicação apropriada e sem acompanhamento médico. Uma pesquisa publicada na revista Obstetrics & Gynecology, revelou que, nos Estados Unidos, entre 1998 e 2005, quando o aborto era um direito em todo o país, a taxa de mortalidade materna em relação a partos com nascidos vivos era de 8,8 mortes por cem mil nascidos vivos, enquanto que a taxa relacionada ao aborto induzido foi de 0,6 mortes por cem mil abortos. Ou seja, o risco de morte relacionada ao aborto é 14 vezes menor do que o relacionado ao parto.
Até a 12ª semana de gestação, o aborto é extremamente seguro e pode ser realizado em casa, com comprimidos (Misoprostol) e acompanhamento, como já acontece em muitos países. No Brasil, essa prática também foi adotada durante a pandemia através da telemedicina, demonstrando sua viabilidade e segurança. Em 2021, durante o governo Bolsonaro, uma nota informativa do Ministério da Saúde afirmou que o aborto por telemedicina não seria seguro, porém, um estudo do Reino Unido identificou uma taxa de sucesso de 98,8% para o procedimento via telemedicina e 98,2% nas consultas presenciais combinadas com uso do medicamento abortivo em casa. A aceitabilidade da telemedicina foi de 96% satisfeitos e 80% relataram uma preferência futura pela telemedicina.
A OMS define que o aborto é inseguro quando o procedimento é realizado por pessoas sem as habilidades necessárias, em um ambiente que não esteja em conformidade com os padrões médicos, ou que ocorra ambos os casos. 
3. Gravidez em criança oferece risco à vida
Verdadeiro
A gravidez em crianças é sempre considerada de risco devido a diversos fatores biológicos e sociais. O corpo de uma criança não está totalmente desenvolvido para suportar uma gravidez, o que aumenta os riscos de complicações graves tanto para a criança quanto para o feto (página 48), conforme o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as crianças e adolescentes grávidas entre 10 e 19 anos têm maior risco de eclâmpsia, endometrite puerperal e infecções sistêmicas do que as mulheres de 20 a 24 anos. Uma pesquisa com meninas latinas com menos de 15 anos, identificou que, em comparação com mulheres entre 20 e 24 anos, elas tinham o risco de morte materna 2,54 vezes maior, o risco de anemia 1,41 vezes maior, o risco de hemorragia pós-parto 1,31 vezes maior e o risco de endometrite puerperal 1,76 vezes maior. 
Meninas até 15 anos tem cinco vezes mais probabilidades de morrer por causa da gravidez que as mulheres entre 20 e 30 anos, e cinco vezes mais possibilidades de ter  fístula obstétrica. 
Estudos demonstraram ainda que além dos riscos físicos, a gravidez infantil tem consequências adversas na saúde mental. Investigações sobre pensamentos ou ações suicidas entre adolescentes grávidas encontraram taxas que variam entre 11% e 30%, as estimativas de uso de drogas variam entre 11% e 52% e entre os pais adolescentes, há 50% de chance de desenvolver estresse pós-traumático. Somam-se os efeitos do abuso e das possíveis ameaças recebidas para não denunciá-lo. Registraram-se sintomas de depressão, ansiedade e estresse pós-traumático, incluindo ideação suicida. Na América Latina, cerca da metade das meninas que vivem gravidezes forçadas abandona a escola, conforme estudo do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem).
4. Abortar reduz a fertilidade 
Falso
Não existem evidências de que um aborto em si — induzido ou espontâneo — reduza a fertilidade. De acordo com o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas e a Associação Brasileira de Reprodução Assistida, pessoas que já passaram por uma interrupção da gravidez conseguem engravidar novamente. 
Um dos estudos mais relevantes sobre o assunto, publicado na revista científica Journal of Obstetrics and Gynaecology, avaliou os efeitos do aborto induzido na fertilidade em centenas de mulhares ao longo de 10 anos. Os pesquisadores avaliaram 433 mulheres com gravidez não planejada e que realizaram o procedimento e 1.035 mulheres cujas gestações foram interrompidas naturalmente. No período analisado, todas tiveram uma gravidez planejada posteriormente ao aborto ou estavam tentando engravidar. Eles concluíram que o “aborto induzido não parece ter um efeito importante na fertilidade futura”.
Médicos especialistas e pesquisadores alertam, no entanto, que apenas procedimentos mal feitos, sem a assistência médica adequada assegurada nos casos permitidos em lei, podem provocar obstruções das trompas ou gerar aderências decorrentes de processos inflamatórios que, eventualmente, podem atrapalhar a fertilidade. 
Posts e discursos falsos ou distorcidos sobre saúde e o aborto legal - Imagem: reprodução
5. O aborto leva à depressão e ao suicídio
Falso
A afirmação de que o aborto causa consequências psicológicas negativas generalizadas é amplamente contestada por diversos estudos e especialistas. As reações ao aborto variam, e muitos dos problemas emocionais associados estão mais ligados ao contexto social e ao estigma do que ao procedimento em si. 
O grupo de trabalho da American Psychological Association (APA) sobre saúde mental e aborto publicou um relatório em 2008, analisando pesquisas empíricas realizadas entre 1989 e 2004, e concluiu que não há evidências suficientes para afirmar que o aborto induzido causa problemas psicológicos significativos na maioria das mulheres. 
No Brasil, pesquisas como a de Mariutti e Furegato identificaram uma "síndrome pós-aborto", porém sua validação científica é questionada. Por outro lado, estudos como o de Daniela Pedroso indicam que o acesso seguro ao aborto pode reduzir o sofrimento psíquico associado à gravidez indesejada, proporcionando alívio e bem-estar para muitas mulheres.
Já a pesquisa de Leila Adesse e Mario F. G. Monteiro enfatiza que o estigma social em torno do aborto pode ter impactos negativos significativos na saúde mental das mulheres, independentemente do procedimento em si. 
O Conselho Federal de Psicologia já se posicionou a favor da descriminalização do aborto, argumentando contra a narrativa dos traumas psicológicos generalizados causados pelo aborto, e apontando para a importância de políticas que considerem o contexto social e o bem-estar das mulheres.
6. O direito ao aborto reduz a mortalidade materna
Verdadeiro
De acordo com a OMS, a interrupção da gravidez feita por métodos recomendados e por profissionais capacitados é uma intervenção de saúde comum e que evita a morte de gestantes. 
Em todo o mundo, estima-se que 45% de todos os abortos induzidos são inseguros, ou seja, realizados por pessoas não treinadas e com métodos perigosos e invasivos. Esses procedimentos correspondem a uma causa evitável de mortes, além de oferecerem riscos para o bem-estar físico e mental das mulheres ao longo da vida.
A OMS também estima que entre 4,7% e 13,2% das mortes maternas a cada ano são decorrentes do aborto inseguro. Segundo a organização, a cada 100 mil abortos inseguros ocorrem 30 mortes em países desenvolvidos. Essa proporção sobe para 220 mortes por 100 mil abortos inseguros nas regiões em desenvolvimento.
Outras pesquisas feitas nas últimas duas décadas corroboram as estimativas da OMS sobre mortalidade materna em consequência da falta de acesso ao aborto legal e seguro. Em 2015, um estudo publicado pela International Journal of Obstetrics & Gynaecology, feito a partir de evidências coletadas em 26 países, mostrou que, enquanto o número de mortes após um aborto seguro foi considerado insignificante, com registro de um óbito a cada 100 mil casos, as taxas de mortalidade eram elevadas nas regiões onde abortos inseguros são comuns, com cerca de 200 mortes registradas a cada 100 mil abortos. O mesmo estudo estimou que, em 2012, só nos países em desenvolvimento, pelo menos 7 milhões de mulheres foram tratadas em hospitais por complicações de abortos inseguros. 
Em 2018, um editorial da revista científica Lancet alertou que os abortos inseguros causam entre 8% e 11% das mortes maternas globais e ocorrem predominantemente em países em desenvolvimento, onde as políticas de acesso ao aborto são mais restritivas, além de fatores socioeconômicos limitarem ainda mais o acesso ao procedimento. 
Já uma pesquisa mais recente, publicado em 2024 na European Journal of Medical & Health Science, concluiu, após analisar ao longo de dez anos os casos de interrupção de gravidez atendidos por um hospital de Bangladesh, que 24,6% das pacientes chegaram com complicações por abortos inseguros e 6% morreram. Os autores concluíram que a redução da mortalidade materna deve acompanhar tanto a promoção de contraceptivos quanto a flexibilização das leis sobre o aborto, uma vez que mulheres arriscam suas vidas e buscam esse procedimento mesmo nos países onde a prática não é legalizada — como em Bangladesh.

LEGISLAÇÃO

7. O aborto é assegurado por lei no Brasil
Verdadeiro
O direito ao aborto é previsto em lei no Brasil desde 1940. Segundo os artigos 124 a 128 do Código Penal, pessoas gestantes podem interromper uma gravidez sem que isso seja considerado crime em três casos:
  • se a gestação oferece risco à vida da gestante;
  • se a gravidez é resultado de violência sexual;
  • se o feto for diagnosticado com anencefalia (má formação do cérebro).
Segundo o Código Penal, não há qualquer limite de tempo de gestação para que o aborto legal seja realizado nos casos de estupro ou de risco à vida de quem gesta. Desde 2012, por decisão do STF, gestantes também têm a liberdade para decidir pela interrupção da gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, anencefalia (má formação do cérebro) sem que haja um tempo limite para a realização do procedimento. 
8. O aborto só é permitido até a 20ª semana de gestação
Falso
O Código Penal brasileiro não estabelece restrições quanto à idade gestacional para a realização do aborto, apenas prevê os permissivos legais, como em casos de estupro, risco de vida para a gestante, e anencefalia. No entanto, a controvérsia sobre o limite gestacional está relacionada à Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde, de 2011, que regulamenta o procedimento exclusivamente para casos de estupro. 
A normativa define aborto como “a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana, com o produto da concepção pesando menos de 500g”, baseando-se em um documento da OMS de 1977, chancelado pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo). Essa definição baseia-se no conceito de viabilidade extrauterina, que se refere à possibilidade de sobrevida fora do útero, relevante apenas para cuidados neonatais, conforme recentemente destacado pela Figo em nota contra o PL do Aborto
Essa conceituação está desatualizada em relação às novas evidências científicas e às mais recentes recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), a OMS define que o aborto induzido não tem relação com o tempo gestacional, peso fetal ou viabilidade extrauterina. 
Desde 2014, o Ministério da Saúde, na Nota Técnica Atenção às Mulheres com Gestação de Anencéfalos, prevê métodos para a interrupção da gravidez até o terceiro trimestre, utilizando técnicas médicas seguras. Tampouco há restrições normativas para a realização do aborto terapêutico, quando envolve risco de vida para a gestante. 
9. Toda criança que engravida tem direito ao aborto
Verdadeiro
O Art. 217-A do Código Penal classifica a prática de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” como estupro de vulnerável. Este artigo visa proteger a dignidade sexual das crianças, considerando que, nesta idade, não há possibilidade de consentimento válido para a prática de ato sexual. Já o Art. 128 estabelece que não se pune a equipe médica e a pessoa que consente a interrupção da gravidez “em caso de gravidez resultante de estupro”. Logo, toda criança ou adolescente até 14 anos tem direito ao aborto legal a ser assegurado pelo SUS, sem margem para questionamento sobre consentimento.
10. Na legislação brasileira, aborto é equiparado ao homicídio
Falso
O Código Penal estabelece uma clara distinção entre os crimes contra a vida, tratando o aborto e o homicídio de maneira diferenciada. O aborto é definido como a interrupção da gravidez, com ou sem o consentimento da gestante, em circunstâncias específicas previstas nos artigos 124 ao 127 do Código Penal. Por outro lado, o homicídio, conforme descrito no artigo 121 do Código Penal, refere-se ao ato de "matar alguém", estabelecendo um contexto distinto e mais grave em relação à lei.
Além disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510), sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, reforçou que a pessoa humana adquire personalidade jurídica e status de cidadã somente após o nascimento com vida. O então ministro relator, Carlos Ayres Britto, em seu voto favorável, enfatizou que "vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte". Ou seja, não é possível cometer homicídio contra quem ainda não nasceu.
Entre o aborto e o homicídio, há ainda o tipo penal de "infanticídio", definido como "matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após". Esse crime, previsto no artigo 123 do Código Penal, tem uma pena máxima três vezes menor que a do homicídio, reforçando a diferença de tratamento legal entre esses atos. Portanto, não é possível equiparar juridicamente o aborto ao homicídio, nem mesmo ao infanticídio.
11. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a descriminalização do aborto
Verdadeiro
Em março de 2022, a OMS lançou um guia atualizado e revisado no qual recomenda a descriminalização do aborto para evitar mortes e ferimentos evitáveis causados por métodos inseguros de interrupção da gravidez. 
A primeira dentre as 50 diretrizes estabelecidas pela organização é a “remoção de barreiras políticas desnecessárias ao aborto seguro, tais como a criminalização, os tempos de espera obrigatórios, a exigência de que a aprovação seja dada por outras pessoas (por exemplo, parceiros ou familiares) ou instituições, e limites sobre quando durante a gravidez um aborto pode ocorrer”. 
Para a OMS, essas barreiras expõem mulheres e meninas a um maior risco de aborto inseguro, estigmatização, complicações de saúde e até morte (página 40).
12. Aborto é legalizado em mais de 70 países
Verdadeiro
Segundo levantamento da ONG norte-americana Center For Reproductive Rights (Centro para Direitos Reprodutivos), o aborto é legalizado em pelo menos 77 países mediante solicitação. 
Dentre os países europeus estão a Islândia, Irlanda, Dinamarca, Holanda, Alemanha, Bélgica e França, entre outros. Na América do Sul, Argentina, Uruguai e Colômbia são algumas das nações que não criminalizam o procedimento
13. Maioria das vítimas de estupro no Brasil tem menos de 14 anos
Verdadeiro
Em 2023, o Brasil teve número recorde de registros de estupros, com 83.988 casos segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 (página 161). A maioria das vítimas é criança ou adolescente: 61,6% dos estupros registrados no país foram cometidos contra meninas menores de 13 anos. O relatório também indicou que a maior parte dos abusos (84,7%) é cometido por familiares ou conhecidos dentro de suas próprias residências (61,7%). 
Outro dado alarmante é que, do total de abusos, as crianças de 0 a 4 anos representaram 11,1% das vítimas; as de 5 a 9 anos, 18%; e aquelas entre 10 e 13 anos somaram 32,5%. Se considerar as menores de até 17 anos, ou seja, “menores de idade”, foram 77,6% de todos os registros.
14. A OMS conceitua o aborto como um procedimento a ser feito apenas até 22 semanas
Falso
A OMS não estabelece nenhum limite de idade gestacional ao definir o conceito de aborto. Na Classificação Internacional de Doenças (CID) da organização, base usada para identificar tendências e estatísticas de saúde em todo o mundo, o aborto induzido é descrito como a “expulsão ou extração completa de um embrião ou feto” após a interrupção deliberada de uma gravidez em curso por meios médicos ou cirúrgicos. Na conceituação, 
a OMS deixa claro que esse procedimento independe do tempo gestacional, ou seja, não impõe qualquer limite de semanas.
15. Interromper gestação de feto anencéfalo é crime
Falso
O aborto em casos de anencefalia (má formação do cérebro) não é considerado crime no Brasil. Desde 2012, o STF decidiu que gestantes têm a liberdade para decidir pela interrupção da gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, a ausência parcial do encéfalo e da calota craniana — nesses casos, não é possível a sobrevivência após o nascimento. A decisão não impôs qualquer tempo limite para a realização do procedimento. 
16. Resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre idade gestacional para o aborto têm força de lei 
Falso
O CFM foi criado em 1951 com o objetivo de, entre outros, fiscalizar e normatizar a prática médica no Brasil. Embora as resoluções normatizem as condutas médicas, a entidade não tem autonomia jurídica para alterar a legislação brasileira ou a Constituição. 
Em 21 de março deste ano, o CFM publicou uma resolução (Resolução CFM nº 2.378) proibindo médicos de realizarem a técnica clínica de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas nos casos de aborto legal já previstos em lei. A norma, contudo, foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio deste ano.
Isso porque a resolução do CFM não tem validade de lei, ou seja, não altera o que está em vigor no Código Penal. Até o momento, pessoas gestantes que foram estupradas, que correm risco de vida ou cujos fetos forem diagnosticados com anencefalia têm direito ao aborto legal em qualquer idade gestacional. 
Posts questionam decisão do STF sobre resolução do CFM — que não tem força de lei. Imagem: reprodução
Ao publicar a decisão de suspender a Resolução CFM hº 2.378, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, relator do caso, indicou a “existência de indícios de abuso do poder regulamentar por parte do Conselho Federal de Medicina” (página 6) ao limitar a realização de procedimento médico reconhecido e recomendado pela Organização Mundial de Saúde e previsto em lei.

O PL 1.904/2024

17. Vítimas de estupro que engravidaram e optaram pelo aborto poderão ter pena maior que a de estupradores caso o PL 1.904/2024 seja aprovado
Verdadeiro
O PL nº 1.904/2024, conhecido como PL do Aborto ou PL do Estuprador, equipara o aborto legal de gestação acima de 22 semanas — direito previsto em lei em caso de estupro, risco à pessoa gestante ou anencefalia — ao crime de homicídio.
Se aprovada, a proposta mudará a regra vigente, uma vez que a lei atual não prevê limite da idade gestacional para realizar o procedimento nestes casos. Além dessa mudança, o PL 1.904 prevê uma pena que pode chegar a até 20 anos de prisão tanto para gestantes quanto para quem realiza o aborto após 22 semanas de gestação, equiparando a punição aos crimes de homicídio simples (artigo 121 do Código Penal). 
Essa penalidade é maior do que a prevista para o estuprador. Segundo o artigo 213 do Código Penal, a pena para quem comete o crime de estupro é de seis a dez anos de prisão.
 Vale pontuar que o texto do PL do Aborto é genérico e não faz referência a exceções em casos de menores de idade. Com isso, se a regra de equiparar a interrupção da gravidez  após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio for aprovada, menores podem ser enquadrados por ato infracional e sofrer pena de internação em estabelecimento
18. Crianças não serão criminalizadas com o PL 1.904/2024
Falso
Caso o projeto de lei 1.904/2024 seja aprovado, crianças e adolescentes entre 12 e 18 anos que optem por não seguir com a gestação, mesmo em caso de estupro vão responder por ato infracional, que corresponderá à conduta prevista como crime no Código Penal (art. 103, ECA). Ou seja, embora não sejam aplicadas as penas previstas no Código Penal, a criança ou adolescente enfrentará medidas socioeducativas, que podem incluir restrição de direitos ou, em casos mais graves, privação de liberdade.  
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Art. 117, medidas socioeducativas podem ser “advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semi-liberdade; internação em estabelecimento educacional”. O art. 121 descreve a internação como “medida privativa da liberdade”. Além disso, familiares das menores também poderão ser criminalizados por autorizarem o procedimento, além da equipe médica que o realizar. 
19. Criminalizar o aborto após 22 semanas vai prejudicar principalmente as crianças
Verdadeiro
O aborto tardio afeta principalmente crianças, que na maioria das vezes não têm informações adequadas sobre seus corpos e estão em situações de extrema vulnerabilidade. Uma pesquisa publicada na revista Sex Reprod Health Matters, traz dados que comprovam essa realidade em diferentes países, ao ilustrar que crianças e adolescentes costumam buscar e acessar o aborto a partir do segundo trimestre de gestação, entre 14 e 27 semanas. 
Em Guadalupe, território ultramarino francês, 55% das adolescentes buscam serviços médicos após três meses sem menstruar. Na Etiópia, meninas com menos de 19 anos tinham mais que o dobro de chances de abortar no segundo trimestre, quando comparadas a mulheres com 25 anos ou mais. Na Nigéria, é mais comum a busca do aborto após a 12ª semana, principalmente entre moradoras de zonas rurais.
No Brasil, as crianças menores de 14 anos são as principais vítimas de estupro. Essas menores enfrentam obstáculos significativos, como a falta de acesso à informação, a vulnerabilidade socioeconômica e o racismo, que dificultam ainda mais o acesso aos serviços de saúde reprodutiva essenciais.
20. O PL 1.904/2024 não viola os direitos humanos
Falso
O PL 1.904/2024 viola os direitos humanos das mulheres e meninas, segundo entidades de classe, associações e organizações da sociedade civil. Em 17 de junho, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) declarou que a proposta é inconstitucional e configura “gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas duramente conquistados ao longo da história, atentando flagrantemente contra a valores do estado democrático de direito e violando preceitos preconizados pela Constituição da República de 1988 e pelos Tratados e Convenções internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Estado brasileiro”. 
A Academia Brasileira de Ciências também se manifestou, em junho, alegando que o PL 1.904 viola os direitos humanos e revitimiza mulheres. Em nota,  a instituição fundada em 1916 afirmou que “o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assegura que todas as pessoas têm direitos à liberdade, vida, segurança e integridade. O direito de fazer o aborto não pode ser negado nos casos em que a gestação coloca em risco a vida, liberdade, segurança e integridade corporal da mãe”. 
A ABC ressaltou que a proposta “é uma revitimização brutal das meninas estupradas, mais uma vez negando a elas o direito à infância e à adolescência digna e segura” e ainda que estupro e gravidez resultante do estupro “deixam sequelas incuráveis em mulheres de qualquer idade, razão pela qual todas, meninas e mulheres estão protegidas pela lei vigente”.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também considera o PL 1.904 uma violação dos direitos humanos. A entidade recomendou o arquivamento da proposta e lembrou que o Brasil se comprometeu a “assegurar que as mulheres e meninas gozem plenamente de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais e tomar medidas eficazes contra as violações desses direitos e liberdades”.

ASSISTOLIA FETAL

21. Técnica de assistolia não é segura para a pessoa gestante
Falso
A assistolia fetal é recomendada pela OMS para a interrupção da gravidez acima de 22 semanas. A técnica consiste na injeção de agentes fármacos, como cloreto de potássio, no feto para evitar que ele nasça com sinais de vida. 
O método é considerado eficaz e seguro para gestantes por entidades médicas nacionais e internacionais, como a Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência (Sogia), Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e a Federação Internacional de Obstetrícia e Ginecologia (Figo), entre outras. Além de seguro, o método também previne o desgaste emocional e psicológico das pacientes e equipes médicas. 
Em 2014, uma pesquisa publicada no periódico científico Journal of Ultrasound in Medicine avaliou os registros de pacientes submetidos à assistolia fetal entre 2002 e 2011. Dentre os 192 procedimentos realizados por volta das 22 semanas de gestação, 191 obtiveram sucesso (99,5%)  — o único caso de complicação materna se deu em razão de uma convulsão antes da aplicação do cloreto de potássio (substância comumente utilizada). Os pesquisadores concluíram que a técnica é efetiva e não acarreta prejuízos à pessoa gestante. 
Vale pontuar que a indução da morte fetal antes do aborto é recomendada pela OMS há mais de uma década.  
22. O aborto é feito usando uma injeção no coração do feto 
Falta contexto
No Brasil, o abortamento legal é feito por meio de diferentes técnicas que podem ser usadas segundo o tempo gestacional — ou seja, não apenas com a administração intracardíaca de fármaco no feto. 
De acordo com o Ministério da Saúde (páginas 33 e 34) e a Organização Mundial da Saúde (páginas 31 a 33), em casos de gravidez de até 22 semanas, deve ser oferecida à pessoa gestante a opção de escolha do método: abortamento farmacológico, ou seja, induzido por medicamentos; procedimentos aspirativos, como a aspiração manual intrauterina (AMIU); ou dilatação seguida de curetagem. 
O protocolo mais comum é o medicamentoso, com uso do misoprostol, fármaco que tem comercialização permitida no Brasil apenas para uso hospitalar e estimula a contração uterina para expulsão do feto.
Em gestações a partir de 20 semanas, a recomendação da OMS é a técnica de assistolia fetal (página 21) para evitar sinais de vida do feto durante o aborto. Esse método consiste na administração intracardíaca (injeção) de fármacos, geralmente o cloreto de potássio, para interromper os batimentos cardíacos do feto, que depois é retirado da barriga para completar o procedimento do aborto. 
Publicações exageram ao afirmar que todos os fetos que nascem com 22 semanas têm 100% de chances de sobrevivência - Imagem: reprodução
23. Induzir o parto em gestações acima de 20 ou 22 semanas pode salvar a vida do feto
Exagerado
Embora o limite de viabilidade fetal – ou seja, de chances de um feto sobreviver fora da barriga da gestante – seja atualmente por volta de 22 semanas —, é exagerado afirmar que todos todos terão 100% de chances de sobrevivência ou não terão sequelas
Diferentes estudos apontam para uma taxa de 20% de sobrevivência de fetos de 22 semanas fora do útero, por exemplo. Devem ainda ser consideradas o peso do feto e a oferta de tratamento intensivo, uma vez que nem todos os serviços de saúde dispõem de equipamentos que possam assegurar o desenvolvimento de um bebê prematuro. 
Em 2019, uma pesquisa publicada pelo Journal of the American Medical Association (Jama) avaliou o desfecho de bebês extremamente prematuros, com peso ao nascer inferior a 400 gramas e idades gestacionais entre 22 e 26 semanas. Dos 205 bebês prematuros acompanhados pelos estudiosos entre 2008 e 2016, apenas 21% sobreviveram.
Vale pontuar que, segundo a Federação Internacional de Obstetrícia e Ginecologia (Figo), a viabilidade fetal é um conceito médico relevante apenas para cuidados neonatais e prestação de cuidados intensivos no contexto de parto prematuro espontâneo ou por indicação médica — e não para abortos induzidos. “O parto prematuro é uma medida de último recurso em obstetrícia, uma vez que qualquer dano ao recém-nascido, por mais leve que seja, deve ser evitado”. 
A entidade também alerta que aplicar o conceito de viabilidade fetal para casos de aborto legal é uma “má interpretação proposital que banaliza os riscos da prematuridade”.
24. Conselho Nacional de Medicina Veterinária proibiu uso de injeção de cloreto de potássio para eutanásia em animais
Falta contexto
O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) proíbe a injeção de cloreto de potássio para eutanásia apenas se esse método for usado sem anestésico. De acordo com a Resolução 1.000/2012 do Conselho, que estabelece as regras para a eutanásia em animais, não há qualquer menção à assistolia fetal entre os procedimentos considerados inaceitáveis. 
Contudo, apenas o uso isolado de substâncias como bloqueadores neuromusculares, cloreto de potássio (usada para a técnica de assistolia fetal em seres humanos) ou sulfato de magnésio, sem um pré-anestésico, está entre as práticas proibidas. 
Em nota, o CFMV informou à Lupa que “a norma não se aplica à medicina humana” e que “qualquer afirmação sobre a proibição e a classificação do procedimento de assistolia fetal como tortura deve considerar os métodos utilizados para induzir tal estado”.
25. Violação do direito ao aborto legal é considerada tortura
Verdadeiro
Segundo a OMS, obstáculos à atenção ao aborto seguro, oportuno, geograficamente acessível, humano e não discriminatório podem causar sofrimento psicológico e violar os direitos das mulheres e meninas. Esses direitos incluem o direito à privacidade, à igualdade e à não discriminação, e o direito de não sofrer tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Em 2016, relatores especiais das Nações Unidas (ONU) declararam, em parecer encaminhado ao STF, que negar o serviço de aborto equivale à tortura. Esse posicionamento da ONU foi endossado por outras organizações, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Centro para os Direitos Reprodutivos — em artigo, essa entidade pontuou a violação dos direitos reprodutivos como tortura ou maus tratos. 
No Brasil, o Ministério Público Federal (MPF) também já se posicionou sobre o assunto. Em 2022, durante investigação sobre a atuação do Hospital Universitário (HU) Polydoro Ernani de São Thiago, em Florianópolis, no caso de uma menina de 11 anos, vítima de estupro, que teve o aborto legal negado pela instituição, o órgão afirmou que o caso se equiparava à tortura: “A negativa de realização do aborto ou exigência de requisitos não previstos em lei nos casos de abortamento legal configura hipótese de violência psicológica, fere o direto à saúde das mulheres, a integridade psicológica e a proibição de submissão a tortura ou a tratamento desumano ou degradante das mulheres e diversos compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário", informou o MPF à época.
Vale pontuar que a OMS ressalta que leis sobre o aborto que exigem que as pessoas busquem ajuda jurídica, aconselhamento ou esperem por um período de tempo para obter um aborto sobrecarregam os sistemas de saúde. Essas leis podem fazer com que meninas e mulheres incorram em custos de viagem, percam rendimentos ou corram o risco de abortar em condições perigosas.

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