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Diretrizes da Meta que permitem discursos discriminatórios esbarram em leis no Brasil
08.01.2025 - 18h35
Nota: O texto foi atualizado para incluir a informação de que as mudanças nas diretrizes da Meta, inicialmente atualizadas na versão em inglês, foram incluídas na versão brasileira.
09.01.2025 - 16h16
Meta anunciou que vai flexibilizar restrições. Foto: Reprodução
As mudanças nas diretrizes de comunidade da Meta — que enfraquecem as proteções contra discriminação de gênero e raça — são vistas como uma afronta às políticas de igualdade e inclusão. Especialistas ouvidos pela Lupa afirmam que a medida reforça estereótipos de gênero e raça nas redes sociais da plataforma e devem ser judicializadas no Brasil.
Na terça-feira (7), a Meta anunciou uma série de medidas, incluindo o fim do Programa de Verificação de Fatos - 3PFC nos Estados Unidos e a diminuição das restrições para conteúdos sobre imigração e identidade de gênero, que, segundo a plataforma, são frequentemente alvo de discurso político e debate. “O que começou como um movimento para ser mais inclusivo tem sido cada vez mais usado para calar opiniões e excluir pessoas com ideias diferentes, e isso foi longe demais”, afirmou o diretor-executivo Mark Zuckerberg.
As diretrizes foram publicadas inicialmente na versão em inglêse foram atualizadas nesta quinta-feira (9) na versão brasileira — afirmam que a plataforma permitirá “alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, considerando discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade, bem como o uso comum e não literal de termos como ‘esquisito’”. Ou seja, qualquer usuário poderia postar que pessoas transgênero são doentes mentais.
Vale pontuar que, em junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de doenças e distúrbios mentais. A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID) manteve a situação que considerava “doença” os indivíduos que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento como um transtorno mental por 28 anos
O texto também ressalta que não removerá conteúdo “que defenda limitações baseadas em gênero para empregos militares, policiais e de ensino". “Também permitimos conteúdo similar relacionado à orientação sexual, desde que fundamentado em crenças religiosas", acrescenta. Segundo o veículo norte-americano Wired, essa discussão pode abrir espaço para publicações do tipo que mulheres não podem servir às Forças Armadas, por exemplo.


Judicialização no Brasil
Para a pesquisadora Yasmin Curzi, do Karsh Institute of Democracy da University of Virginia, a Meta está legitimando o discurso de ódio propagado pela extrema-direita em interesse próprio. “O que o Mark Zuckerberg fez foi colocar os pingos nos is, de que fracassou na moderação de conteúdo e de permitir ataques às políticas de gênero e de imigração que são uma agenda muito forte da extrema-direita no mundo”. 
Curzi avalia ainda que a medida pode ter implicações jurídicas para a Meta aqui no Brasil. “Significa que há possibilidade de repercussões judiciais para os usuários que postarem e para a empresa, caso não remova a partir de decisão judicial, seguindo o artigo 19 do Marco Civil da Internet”, explica. 
O entendimento é de que as políticas de comunidade da Meta no Brasil devem obedecer a legislação local. E que conteúdos LGBTfóbicos podem ser enquadrados como crime. 
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais Transexuais (Antra), afirmou em comunicado que “a inclinação de Zuckerberg ao ‘trumpismo’ reforça a urgência de regulamentar as redes sociais no Brasil, como já feito em outros países”. Em suas redes sociais, a Antra qualificou que “o anúncio de Zuckerberg é alarmante e aponta para um futuro marcado por uma enxurrada de fake news e discursos de ódio, sustentados pelo frágil pretexto da ‘liberdade de expressão’. Ataques a minorias e à democracia passam a ser endossados pelas big techs sem qualquer constrangimento".
Em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQIA+ podem ser enquadrados como injúria racial. Em junho de 2019,  o STF também reconheceu a omissão do Congresso Nacional em criminalizar a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual e determinou o enquadramento da homotransfobia na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989). 
Por outro lado, especialistas avaliam que é preciso que a Justiça e o Congresso Nacional discutam a temática de regulamentação das redes. Para Celina Beatriz Bottino, diretora de Projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), a análise do STF sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet é um importante passo neste sentido, mas não se sabe como se dará o embate no campo prático.  
“O debate então passou a ser liderado pelo STF que está decidindo sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Resta saber como a maioria dos ministros irá se posicionar sobre o tema e como a empresa de Zuckerberg vai reagir ao futuro cenário regulatório Brasileiro, se além de se aliar ao Trump, também seguirá o Musk no seu embate com autoridades brasileiras". 
– Celina Beatriz Bottino, diretora de Projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS)
O artigo 19 diz que as empresas de redes sociais e aplicativos de mensagens só podem ser responsabilizadas civilmente por conteúdo veiculado nas plataformas se não adotarem medidas — exclusão de conteúdos, por exemplo — ordenadas pela Justiça. Ou seja, neste regime, conhecido como “ordem judicial e retirada”, as plataformas não podem ser diretamente responsabilizadas por publicações feitas por terceiros, ainda que hospedem, impulsionem ou lucrem com estes conteúdos. 
Três ministros do STF já votaram para determinar que as big techs devem retirar conteúdos quando forem acionadas por quem foi atingido por uma alegação falsa, antes mesmo de uma decisão judicial. Para o ministro Dias Toffoli – relator de umas ações que tratam sobre a responsabilidade civil dos provedores de internet por conteúdos publicados por terceiros –, existe uma percepção de que o artigo 19 protege conteúdos desinformativos e potencialmente nocivos. O ministro André Mendonça pediu vista no processo, e o julgamento só deverá ser retomado em fevereiro.
No caso da União Europeia, o comunicado da Meta indica que se o usuário encontrar algum conteúdo que acredite violar as leis de discurso de ódio de seu país, deve enviar uma solicitação de remoção legal ao Facebook ou Instagram. Não há qualquer comunicado para outros países até o momento.
Liberdade de expressão x censura
Sob o argumento de “garantir que as pessoas possam compartilhar suas crenças e experiências nas plataformas”, a Meta retirou de suas diretrizes, por exemplo, o trecho que dizia serem proibidas publicações que insinuavam “mulheres como objetos domésticos ou propriedade ou objetos em geral”. 
Outro ponto retirado das guidelines foi o de que “conteúdo direcionado a uma pessoa ou grupo de pessoas com base em suas características protegidas, com alegações de que elas têm ou espalham o novo coronavírus, são responsáveis ​​pela existência do novo coronavírus ou estão espalhando deliberadamente o novo coronavírus". Isso indica que publicações associando a responsabilidade da Covid-19 ao povo chinês seria permitido pela plataforma — o que é racismo. 
Na prática, essa ‘simplificação’ em algumas diretrizes de moderação implica em menos transparência, segundo Débora Salles, coordenadora de pesquisas do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Quando estamos falando de moderação de conteúdo, a gente está falando de uma garantia de direitos, e não necessariamente um desrespeito à liberdade de expressão. E esse é um discurso que já vem sendo usado há algum tempo por aqueles que são contrários à regulação das plataformas”. 
– Débora Salles, coordenadora de pesquisas do NetLab
O Supremo Tribunal Federal (STF) lembra que a liberdade de expressão não dá o direito à prática de ilícitos (página 17), como discurso que incite a violência, discurso manifestamente difamatório, com juízo depreciativo e de injúria, e manifestações que causem perigo iminente ao sistema jurídico, democrático e ao bem público.
"Há um incentivo perverso para disseminação do ódio, da desinformação e das teorias conspiratórias. E muitas vezes se invoca a liberdade de expressão quando o que há é o interesse comercial de obter mais cliques, mais acessos, mais engajamento pela difusão do ódio", reforçou o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, durante evento das agendas do G20, realizado ano passado no Rio de Janeiro.
A professora Rafiza Varão, da Universidade de Brasília (UnB), lembra que a liberdade de expressão no Brasil tem limites e não é absoluta. Para ela, a Meta está se reposicionando em uma conjuntura política que cada vez mais se agrava, em contextos de inserção em outros mercados, como estratégia de seguir o discurso extremista do presidente eleito Donald Trump. “Os impactos dessas mudanças serão uma acentuação dos estragos causados pela desinformação, que já eram imensos, e a desestabilização das democracias no mundo, atravancando ainda mais as escolhas eleitorais e eleições e mandatos pautados pelo real interesse público", reforça.
A Coalizão Direitos na Rede publicou nota em que criticou a decisão da Meta e afirmou que  a empresa sinaliza “que não terá mais ações de moderação de conteúdos contra desinformação, discurso de ódio e outras políticas de proteção a favor das pessoas mais vulnerabilizadas". Também acrescentou que a Meta já é bastante falha, “dando margem à práticas de violência de gênero". 
“O discurso da Meta se alinha com uma retórica preocupante que afronta iniciativas regulatórias legítimas e necessárias de governos e da sociedade civil em diversas partes do mundo, incluindo a América Latina, generalizando essas ações como ‘censura’ ou ‘ataques a empresas estadunidenses’. Ao fazer isso, a Meta ataca de forma aberta os esforços soberanos e democráticos de nações em proteger suas populações contra os danos provocados pelas Big Techs. Com isso, prioriza, mais uma vez, os interesses estadunidenses e os lucros de sua corporação em detrimento da construção de ambientes digitais que prezam pela segurança de seus consumidores”.
– Coalizão Direitos na Rede

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Francisco Amorim
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